"A Substância" (The Substance, 2024), de Coralie Fargeat - Divulgação
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“A Substância”: Hollywood está pronta para seu close-up, e o que vemos é monstruoso

Reúna a turba assassina de “Frankenstein” (1931). Pegue a trama trágica de “Crepúsculo dos Deuses” (1950). A construção da mulher idealizada em “Um Corpo que Cai” (1958). Pitadas do hagsploitation de “O Que Terá Acontecido a Baby Jane?” (1962). A viagem experimental e a revelação grandiloquente de “2001: Uma Odisseia no Espaço” (1968). Dê espaço à raiva feminina irrefreada em um final apoteótico à maneira de “Carrie, a Estranha” (1976). Volte reiteradas vezes a um corredor tão longo, colorido e amedrontador quanto os de “O Iluminado” (1980). Inclua criaturas rastejantes vindas diretamente de “O Enigma de Outro Mundo” (1982). Tire itens do corpo do protagonista, a exemplo de “Videodrome – A Síndrome do Vídeo” (1983). Tome emprestado o líquido verde fluorescente de “Re-Animator” (1985). Arranque partes do personagem principal, inspirando-se em “A Mosca” (1986). Promova uma orgia de body horror e gore digna de “A Sociedade dos Amigos do Diabo” (1989). Destaque Los Angeles e suas palmeiras seguindo as deixas de “Cidade dos Sonhos” (2001). Seja tão cinéfila nas referências, precisa na direção e implacável no discurso quanto a diretora de “Bela Vingança” (2020). Construa um monstro tão histriônico quanto o de “A Morte do Demônio: A Ascensão” (2023).

Some tudo isto a um clássico pacto faustiano e a uma premissa de conto de fadas e, voilà: temos “A Substância” (2024), novo longa-metragem da diretora francesa Coralie Fargeat (“Vingança”). Nele, a estrela midiática Elisabeth Sparkle (Demi Moore), que acaba de chegar à meia idade e é descartada de seu programa na televisão pelo diretor sexista da emissora (sugestivamente chamado de Harvey, papel de Dennis Quaid), decide recorrer a uma droga de origem desconhecida para tentar voltar aos holofotes. Trata-se da “substância” do título, que replica células e cria temporariamente uma versão (Margaret Qualley) mais jovem e supostamente melhor da protagonista. Entretanto, com o passar do tempo, Elisabeth é levada a nutrir sentimentos cada vez mais autodestrutivos contra seu próprio corpo, abrindo caminho para que Sue, seu “eu” jovem, domine de forma perigosa a utilização do elixir.

Embora esta crítica tenha começado com uma enumeração das várias possíveis inspirações e citações diretas que Fargeat faz a outros filmes em seu segundo longa-metragem, seria tolo pensar que “A Substância” é um trabalho puramente referencial. Pelo contrário, a roteirista e diretora se vale destas tantas ideias para construir um filme totalmente seu, repleto de originalidade e de ousadia. Originalidade na proposta de ficção científica, que fantasia um composto capaz de criar cópias humanas mais jovens com as quais as pessoas têm que alternar a existência semana a semana. E ousadia em uma condução que não tem medo de soar exagerada, grotesca e ultrajante. Temos, a título de exemplo, na reta final do longa uma citação direta a “Um Corpo que Cai”, um dos filmes mais cultuados pela cinefilia, em uma cena tão ridícula pelo contraste quanto brilhante pela referência.



"A Substância" (The Substance, 2024), de Coralie Fargeat - Divulgação
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filme a substância

Poderíamos dizer que “A Substância” prega uma divertida peça no espectador. O filme, que competiu pela Palma de Ouro e venceu o Prêmio de Melhor Roteiro no 77º Festival de Cannes, é distribuído pela MUBI e realizado por uma cineasta francesa em ascensão. À primeira vista, seria um típico “filme de arte”, metafórico em sua trama, estilizado em sua linguagem, e fadado a ser divisivo junto à crítica especializada nos principais festivais de cinema do mundo. Porém, embora atenda a essas expectativas, o longa de Fargeat subverte todas as apostas ao mergulhar fundo no cinema de gênero, mais especificamente no horror, no body horror e, por que não, no mais absoluto cinema trash, se afastando cada vez mais do dito “cinema de prestígio” em direção a uma abordagem formal que explicita a sátira mordaz a Hollywood, à televisão e aos padrões estéticos que esgarçam vidas e carreiras de mulheres há séculos.

Os dois primeiros planos, com o ovo se duplicando e a estrela na calçada da fama sofrendo as intempéries do ostracismo, são mostras da inventividade visual de Fargeat e resumem o filme de maneira precisa. A partir daí, ao lado de seu diretor de fotografia, Benjamin Kracun (coincidentemente, fotógrafo também do já referido “Bela Vingança”), a cineasta opta por criar ambientes ostensivamente artificiais, com cores saturadas e alto contraste, espelhando imageticamente a cópia antinatural de Elisabeth. É notável a comparação que a diretora induz nos dois momentos em que vemos a protagonista finalizando a gravação de seu programa televisivo de ginástica: quando é Elisabeth, uma mulher de meia idade, as luzes do estúdio se apagam e a personagem é envolvida em uma atmosfera soturna que pressagia seu declínio profissional forçado; já quando é a vez de Sue, mesmo sem lâmpadas acesas e refletores o ambiente ainda parece solar, quente e, tal qual a personagem, plastificado. Toda esta visualidade algo fantástica é capturada ora a partir de planos muito fechados que chegam a ser intrusivos – no rosto tenso de Harvey, para evidenciar seu sadismo, ou no corpo de Sue, para explicitar o fetichismo muito comum do olhar masculino –, ora por meio de enquadramentos amplos que colocam a protagonista de meia-idade em meio ao vazio do esquecimento, seja em seu apartamento, seja no corredor da empresa que paulatinamente vai deixando de exibir seus retratos.

Conduzindo esta espiral que fatalmente resultará em destruição estão Demi Moore e Margaret Qualley. Ambas não se destacam no início, mas, à medida que suas personagens e a relação entre elas ficam mais intensas e complexas, as atrizes começam a brilhar nos papéis, que exigem muito por serem calcados mais na expressividade do que em diálogos. Tanto a intérprete experiente quanto a estrela em ascensão demonstram uma entrega absoluta tanto à melancolia quanto à megalomania do ousado roteiro de Coralie Fargeat. Isso passa, claro, pela disposição de se mostrarem vulneráveis fisicamente, a partir da nudez e das profanações de seus corpos perantes às câmeras, mas também à coragem de exibirem fragilidades emocionais muito profundas que conversam com a realidade que cada atriz já viveu ou vai vivenciar. Moore, em especial, assim como Norma Desmond em “Crepúsculo dos Deuses”, certamente já experienciou na pele o etarismo de Hollywood, e prova ter muita altivez nas cenas em que precisa mergulhar na auto-depreciação dilacerante da personagem – há uma cena particularmente triste antes de um encontro amoroso, quando a atriz, sem fala alguma, usa dos gestos e dos olhos para expor a debilidade infligida à protagonista por seu entorno.

"A Substância" (The Substance, 2024), de Coralie Fargeat - Divulgação
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A construção do drama feita por Fargeat é exemplar nesse sentido. Vemos, de forma literal, e por isso mesmo, puramente cinematográfica, como o sexismo e o etarismo operam na diminuição da auto-estima das mulheres e promovem a constante competitividade entre elas. Talvez por isso, não há um homem sequer que tente parar, ou pior, não colabore ativamente para o ciclo destrutivo da protagonista. Certamente uma extrapolação da realidade, mas uma ótima maneira de mostrar quem, no fim das contas, lucra de forma imediata com a (auto)degradação das mulheres. À medida que Sue vai se tornando famosa, ela passa a odiar Elisabeth e a querer, em um impulso imaturo, ficar mais do que uma semana desfrutando da juventude, não importa a que custos para sua contraparte. Elisabeth, por sua vez, não consegue pôr um fim ao uso da substância, mesmo percebendo a progressiva deterioração de seu corpo pelo uso incorreto da droga; os dias dela se arrastam solitários e enclausurados no apartamento, onde ela cozinha, come e inveja a beleza de Sue no outdoor em frente à janela.

Para além do etarismo e da busca obsessiva pela beleza utópica, o filme aborda também, de maneira bastante profunda, os conflitos psíquicos que podem levar uma pessoa a lutar consigo mesma e se autodestruir. O final explicita, de forma inequívoca e satírica, ao nível da caricatura, o quanto as pressões sociais podem gerar monstros e, literalmente, eviscerar vidas. É certamente o filme mais ácido contra a indústria desde “Não! Não Olhe!” (2022), que também trazia a ideia de que Hollywood consome e depois rejeita os responsáveis por seu sucesso, tal qual a plateia do final do filme de Fargeat repudiando a criatura que sua insaciável sede por perfeição havia alimentado.

Finalmente, “A Substância” se prova o melhor filme de 2024 até agora, e um dos melhores longas-metragens de terror dos últimos anos. Trata-se de uma mistura irretocável de body horror e gore com as melhores metáforas que o gênero pode oferecer. Crédito também para a enervante e incômoda trilha sonora do britânico Raffertie, que combina sons dissonantes, batidas eletrônicas e influências da disco music, e para a maquiagem e efeitos visuais, que vão do realismo ao absurdo sempre em cores vivas e texturas repulsivas.

"A Substância" (The Substance, 2024), de Coralie Fargeat - Divulgação
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A habilidade da roteirista/diretora Coralie Fargeat de misturar imagens grotescas de corpos se contorcendo e se mutando a reflexões profundas sobre padrões de beleza e patriarcado, tudo isso de maneira absolutamente camp e cada vez mais tresloucada, é o que torna este um filme que ainda será muito discutido e revisitado por sua perspicácia, coragem de mergulhar no ridículo e coerência temática e estética. Se fosse para fazer uma aposta futurística, diria que ao longo dos próximos anos este filme vai ganhar um status tão perene quanto o de obras aclamadas como “Corra!” (2017) e “Hereditário” (2018). “A Substância” é chocante, triste e irônico, às vezes ao mesmo tempo. Hollywood sempre esteve e ainda está pronta para seu close-up, mas o que vemos nunca foi tão monstruoso. ■

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Nota:

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A SUBSTÂNCIA (The Substance, 2024, França, EUA, Reino Unido). Direção: Coralie Fargeat; Roteiro: Coralie Fargeat; Produção: Coralie Fargeat, Tim Bevan, Eric Fellner; Fotografia: Benjamin Kracun; Montagem: Coralie Fargeat, Jérôme Eltabet, Valentin Feron; Música: Raffertie; Com: Demi Moore, Margaret Qualley, Dennis Quaid; Estúdio: Working Title Films, Blacksmith; Distribuição: MUBI, Imagem Filmes; Duração: 2h 21min.

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