O filme “Coringa” (2019) pode ser definido como “perturbador”, “denso”. O longa, aclamado pela crítica e querido pelo público, levou às telas apreensão, incômodo e peso, e por isso, é compreensível que fãs da produção de cinco anos atrás busquem esses pontos na continuação, “Coringa: Delírio a Dois”. Mas, no meio do caminho, há um vilão para atrapalhar quem vai ao cinema: a expectativa.
De acordo com o dicionário Oxford Languages, a palavra significa: “uma situação de quem espera a ocorrência de algo, ou sua probabilidade de ocorrência, em determinado momento”. A partir disso, posso afirmar que a expectativa pode ser considerada a grande protagonista do novo filme, acompanhando o público do início ao fim.
Na verdade, a expectativa ronda “Coringa: Delírio a Dois” desde 2022, quando o diretor Todd Phillips confirmou a realização da sequência, novamente com Joaquin Phoenix reprisando o papel que lhe rendeu o primeiro Oscar. “Coringa: Folie à Deux” foi o título original anunciado e faz referência ao Transtorno Delirante Induzido, que é um transtorno raro no qual os sintomas psicóticos são compartilhados por duas ou mais pessoas. Ou seja, no anúncio ficou claro que o protagonista teria uma companhia para dividir a história. Pouco tempo depois, Lady Gaga confirmou que faria parte do elenco, gerando ainda mais expectativa. E em 2023, o primeiro trailer do filme foi lançado, levando à criação de diversas teorias a respeito da história, mas trazendo também uma certa desconfiança… E enfim, o filme chega ao público.
crítica coringa delírio a dois
Em “Coringa: Delírio a Dois”, Arthur Fleck está institucionalizado em Arkham, esperando ser julgado por seus crimes cometidos como Coringa. Enquanto luta com sua dupla identidade, Arthur se apaixona de maneira repentina e encontra na música um refúgio seguro para seus pensamentos sombrios.
O filme é e não é um musical. Nos bastidores, Gaga afirmou que não considera a obra um musical, enquanto Phillips disse que, tecnicamente, não é um longa do gênero, mas a música faz parte da personalidade do protagonista, assim como no filme de origem.
Realmente a presença da música na trama é utilizada de forma recorrente, sendo uma ferramenta para trazer à tona os desejos e sentimentos de Fleck de maneira muito fantasiosa. Mas no longa, o musical, enquanto gênero cinematográfico, é apresentado de forma entediante e cansativa, provocando o questionamento: “nossa, de novo o personagem vai começar a cantar?”
Em algumas cenas, as canções são jogadas repentinamente, quando fica claro que um diálogo seria mais apropriado, o que contribui para que a presença da música se torne algo banal. E este é um erro quase imperdoável. Trazer uma cantora do nível de Lady Gaga para um musical e, ao invés de utilizar a música como um recurso emocional que envolva o público, transformar as canções em algo monótono é, no mínimo, uma decisão amadora por parte de Phillips, que novamente assina o roteiro ao lado de Scott Silver.
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Gaga é uma artista grandiosa, e é justamente isso que impede que as cenas musicais se tornem totalmente desinteressantes. Embora alguns números não enriqueçam tanto à narrativa, eles ganham força pela presença de uma intérprete versátil, que oferece uma performance de extrema qualidade, transitando com maestria entre o pop e o jazz. Dona de 13 Grammys (e um Oscar) conquistados em cerca de 15 anos de carreira, Gaga eleva as apresentações do filme a outro patamar, dando vida à uma Harley Quinn desequilibrada e extravagante, sendo fiel à personalidade da vilã tão conhecida do público, seja nos cinemas, nos quadrinhos ou nos desenhos animados.
Mas, infelizmente, a atuação da artista não passa muito disso. O roteiro não desenvolve bem a personagem, mesmo ela sendo a coprotagonista do longa. A impressão que fica é que Phillips e Silver se limitaram a dar voz à Gaga apenas nos palcos e não se aprofundaram na trama do par romântico do Coringa. Tudo o que sabemos da vida pregressa de Lee Quinzel é dito em uma única frase e o que resta é o que conseguimos inferir enquanto ela contracena com Fleck. Tudo o que diz respeito a ela é muito raso e isso prejudica a atuação de Gaga, que não tem um texto coeso para trabalhar e acaba apresentando uma personagem genérica, sem profundidade e sem história.
O mau desenvolvimento de Lee deixa ainda mais nítida a pouca química entre Phoenix e Gaga. Mas o casal não é o único prejudicado. Ao contrário do filme de origem, “Coringa: Delírio a Dois” tem uma narrativa desconexa, pouco atrativa e que quase não demanda de seu elenco. Não há surpresas, riscos e muito menos diálogos elaborados ou interessantes. Há perguntas que não são respondidas e relações que não são elaboradas, gerando confusão e esvaziando a trama. O filme é marcado por faltas: não há suspense, perturbação, inquietação, medo ou reflexões, elementos que foram marcantes no longa de 2019, escrito pela mesma dupla.
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O roteiro fraco só não consegue estragar uma coisa: a impecável atuação de Joaquin Phoenix. Mas isso quando ele não está cantando, pois nas cenas musicais é nítido notar o desconforto do ator. No início do filme, pode-se até duvidar se ele conseguirá oferecer uma interpretação tão brilhante quanto na primeira vez em que interpretou o personagem, mas, nas poucas cenas impactantes da narrativa, Phoenix entrega novamente uma ótima performance, capturando a atenção do público a cada gesto e expressão. Note-se, porém, que, por ser um filme com poucas cenas de violência, a transformação de Arthur Fleck em Coringa precisou ser realizada de maneira mais sutil. E o ator desempenha esse desafio com maestria.
A dualidade entre a realidade e a fantasia na mente de Arthur Fleck/Coringa é apresentada de uma forma intrigante, que requer uma atenção maior do espectador. Mas a escolha de não aprofundar as questões sociais que sempre estiveram presentes na vida do personagem também mostra a preguiça de Phillips e Silver, que só entram nesses problemas de fato no terceiro ato, quando o personagem fala pouco tempo sobre o que a sociedade sempre esperou dele. É um momento emocionante e tenso, como acontece diversas vezes em “Coringa”, porém, o monólogo é cortado de maneira brusca. Algo, aliás, que é recorrente ao longo do filme: quando há qualquer sinal de profundidade, a cena é interrompida por algum elemento, seja a música ou uma ação desconexa de algum dos personagens.
Entre os (poucos) pontos positivos de “Coringa: Delírio a Dois” está também a trilha sonora: linda, com uma mistura de covers de canções clássicas, como “What the World Needs Now is Love”, de Jackie DeShannon, ou “Close to you”, dos Carpenters, com músicas compostas por Lady Gaga exclusivamente para o filme, como “The Joker”.
Destaca-se ainda o visual trabalhado pelo diretor de fotografia, Lawrence Sher (que também trabalhou no filme de 2019). Ele faz um belo trabalho, trazendo para a tela um musical distópico, com muito cinza e preto ao redor dos personagens, mas com cores brilhantes e vivas para representar o amor entre Coringa e Arlequina.
A verdade é que “Coringa: Delírio a Dois” não é um filme péssimo. Porém, quando se constata que temos uma das maiores estrelas do pop atual ao lado de um ator versátil e aclamado, com um orçamento de 200 milhões de dólares gasto em um filme apenas mediano, o resultado é um enorme desperdício. ■
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CORINGA: DELÍRIO A DOIS (Joker: Folie à Deux, 2024, EUA). Direção: Todd Phillips; Roteiro: Todd Phillips, Scott Silver; Produção: Todd Phillips, Emma Tillinger Koskoff, Joseph Garner; Fotografia: Lawrence Sher; Montagem: Jeff Groth; Música: Hildur Guðnadóttir; Com: Joaquin Phoenix, Lady Gaga, Brendan Gleeson, Catherine Keener, Zazie Beetz; Estúdio: Warner Bros., Domain Entertainment, DC Studios; Distribuição: Warner Bros.; Duração: 2h 18 min.
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Jornalista e crítica de cinema, sempre que pode está falando de filmes de heróis, animações, comédias românticas ou blockbusters. O jornalismo esportivo foi sua grande paixão durante a graduação. Há pouco, descobriu que o que gosta mesmo é de falar sobre produções audiovisuais, sejam elas filmes que concorrem ao Oscar ou um bom título do Darren Star. Atualmente também trabalha como produtora de TV na Rede Minas.