Ao longo de sua carreira, o diretor espanhol Pedro Almodóvar sempre transitou entre dois estilos distintos. De um lado temos o Almodóvar cômico, melodramático e histriônico de filmes como “Pepi, Luci, Bom” (1980), “Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos” (1988) e “Volver” (2006). De outro, vemos o cineasta sóbrio, sensível e reflexivo de “A Flor do Meu Segredo” (1995), “Tudo Sobre Minha Mãe” (1999) e “Mães Paralelas” (2021). Evidentemente, essas não são categorias fechadas, que não se interligam. Pelo contrário: “Tudo sobre minha mãe” tem muito de melodrama na trajetória da protagonista e das pessoas que passam por sua vida, e “Volver” se prova um retrato muito sensível dos traumas familiares que perpassam gerações.
Algo, porém, que sempre esteve presente na filmografia quase cinquentenária do realizador hispânico, independentemente das escolhas estilísticas, tem sido a preferência por abordar temas considerados tabus, polêmicos ou controversos. Foi assim com “Maus Hábitos” (1983), meu filme preferido do diretor, e com “Fale com Ela” (2002) e “A Pele que Habito” (2011), talvez seus trabalhos tematicamente mais arriscados. Almodóvar volta agora com “O Quarto ao Lado”, seu primeiro longa-metragem falado em inglês, tratando novamente de um assunto pesado e difícil, e inclusive referenciando claramente seu polêmico filme de 2002. Vemos, porém, o que penso ser o nascimento de um novo estilo. Uma terceira identidade deste autor que vem se renovando a cada década.
O filme, estrelado por Julianne Moore e Tilda Swinton, nos respectivos papeis das amigas Ingrid e Martha, acompanha o reencontro entre as duas após vários anos. Martha se encontra em estágio terminal de câncer, e pede a Ingrid que viaje com ela para uma propriedade remota e fique no quarto ao lado enquanto ela tira a própria vida. Baseado no livro “O que você está enfrentando” (2020), da autora estadunidense Sigrid Nunez, o filme ganhou o Leão de Ouro no 81º Festival de Veneza, feito até então inédito para o diretor espanhol.
Confesso que, quando soube que Almodóvar dirigiria seu primeiro filme em inglês, passei a encarar o projeto com grande receio. Afinal, a raiz de Almodóvar está na latinidade, em personagens falando uns por cima dos outros com a musicalidade que somente o idioma espanhol parece ter. Não por acaso, o cineasta trabalha tanto na chave do melodrama, criando tramas que mais lembram telenovelas mexicanas. As línguas latinas também servem muito bem a Almodóvar por soarem muito mais emocionais. Me parecia contraditório, então, que o realizador fosse fazer um filme em inglês, um idioma germânico, e, por isso mesmo, tido como mais frio e racional.
Ocorre que, em “O Quarto ao Lado”, Almodóvar decide justamente se distanciar de sua faceta melodramática para lidar com o tema da morte da forma menos excêntrica possível. Por isso, a preferência pelo inglês se mostra totalmente justificada, e não soa como uma descaracterização do autor ou um aceno barato ao mercado internacional – se é que o diretor alguma vez precisou fazer isso. Na realidade, este parece ser o filme mais austero do diretor. Tanto que outro elemento almodovariano clássico, o sexo, está ausente aqui, salvo por uma breve e inócua menção durante um diálogo. As cenas intensas de “A Lei do Desejo” (1987) e “Áta-me” (1990), por exemplo, ficaram no passado. Ciente de que a representação do sexo no cinema dificilmente será tão transgressora como nas décadas passadas e em seus próprios filmes anteriores, o diretor volta seu olhar para a finitude da vida, um assunto batido, mas impossível de ser superado.
Para tal, Almodóvar traz à tela, como de praxe, sua paixão pelo cinema. Se em “De Salto Alto” (1991), o cineasta se apropria de “Sonata de Outono” (1978), em “O Quarto ao Lado” ele parece referenciar outra obra de Ingmar Bergman, o denso “Morangos Silvestres” (1957), com a trama de uma personagem que precisa enfrentar a chegada da morte. Enquanto em “O que eu fiz para merecer isto” (1984),a inspiração são os filmes neorrealistas, neste seu primeiro longa-metragem em inglês a matriz vem a ser também um filme em língua inglesa dirigido por um diretor europeu, o belíssimo “Viagem à Itália” (1954), de Roberto Rossellini. Ingrid e Martha chegam a ir um dia ao cinema assistir a esta obra, notável pelas alegorias sobre partidas e ausências, e por isso em franco diálogo com a trama de “O Quarto ao Lado”.
O também roteirista Almodóvar, no entanto, avança nas intertextualidades, e talvez a que mais salte aos olhos neste seu novo filme é a citação direta ao escritor irlandês James Joyce. Mais precisamente ao conto “Os Mortos”, último da coletânea “Dublinenses” (1914). Ao final da história, depois de o protagonista Gabriel Conroy ouvir uma revelação da esposa, ele se deita ao lado dela, e o narrador-observador nos diz: “Um por um estavam todos transformando-se em espectros. Seria preferível passar para o outro mundo de maneira corajosa, na glória de uma paixão, que murchar e secar lentamente na velhice”. A personagem de Tilda Swinton, no filme, logo após optar por interromper a própria vida, defende de forma simples sua decisão, ecoando a filosofia do livro: “Eu fiquei reduzida a muito pouco de mim mesma. […] O câncer não pode acabar comigo se eu acabar primeiro”.
“Os Mortos” está presente durante todo o longa-metragem, seja nos primeiros flocos de neve do inverno, no monólogo final declamado por Martha, na adaptação de John Huston que as amigas assistem na televisão da casa alugada ou no plano final, com “a neve precipitando-se placidamente no universo e placidamente se precipitando, descendo como a hora final sobre todos os vivos e os mortos”. O filme todo, aliás, carrega uma certa aura literária consigo. Os personagens por vezes param e se lançam em densos e introspectivos monólogos, como se não falassem para seus interlocutores, nem mesmo para si, mas estivessem declamando solilóquios existenciais shakespearianos para uma plateia que transcende a tela. É o caso de Damian, (John Turturro), amigo das protagonistas e também ex-companheiro de cada uma delas, que em dado momento, incorpora o “profeta do Apocalipse” e faz um discurso sobre a impossibilidade de se viver feliz sob o neoliberalismo. Trata-se de um dispositivo algo bergmaniano também – um amigo, durante a projeção, me chamou a atenção para a semelhança entre o pôster deste Almodóvar e o de “Persona” (1966), ambos mostrando rostos de mulheres olhando na mesma direção.
As faces, a propósito, ocupam lugar de destaque em “O Quarto ao Lado”. Na primeira vez que vemos Martha, no hospital, seu rosto aparece em um grande close-up, abrindo os olhos e nos encarando, e só depois descobrimos que ela está em uma cama de hospital. Ingrid, sua amiga, também se comunica muito através do rosto. É por meio dos expressivos olhos da extraordinária Julianne Moore que sentimos primeiro a consternação diante da doença de Martha, depois a insegurança contrária à decisão irreversível da amiga, e finalmente a resignação frente à postura resoluta que a personagem de Tilda Swinton mantém. Estamos falando, claro, de suas atrizes tão rigorosas nos movimentos, olhares e verbalizações quanto intensas no trato com sentimentos e emoções. Ambas conseguem construir diante do espectador um vínculo sincero que começa adormecido, devido ao tempo distantes, até adquirir uma profundidade que apenas as maiores amizades podem reivindicar. Ponto também para a direção de Almodóvar, que nunca deixa Swinton cair na autopiedade ou Moore descambar para a condescendência, ou ambas chegarem no sentimentalismo. Há uma discrição e uma solenidade na condução que marcam este novo Almodóvar sobre o qual falo.
Essa austeridade vem também na forma do filme. Almodóvar e sua montadora, Teresa Font (colaboradora do diretor em seus dois últimos longas-metragens, “Dor e Glória” e “Madres Paralelas”) trabalham aqui, pelo menos duas vezes, com um recurso bastante clássico, a elipse. Vemos isso no início, quando Ingrid vai visitar Martha pela primeira vez no hospital, e promete voltar outro dia. Tão logo ela finaliza a frase, um corte seco já nos leva para “o outro dia”, consolidando de forma ágil o relacionamento entre as duas. Em um trecho mais à frente, uma conversa começa em um lugar e termina em outro, ligada também apenas por um corte, explicitando de forma simples e elegante para o público a importância dos temas abordados no diálogos e como eles perpassam diferentes momentos da rotina das personagens.
O que Almodóvar e seu diretor de fotografia Eduard Grau – do ótimo “Identidade” (2021), de Rebecca Hall – escolhem enquadrar também demonstra as aspirações mais modestas, mas nem por isso menos significativas, desta aparente nova fase do cineasta. As cores saturadas e contrastantes de Almodóvar estão mais do que presentes, mas sem chamar tanta atenção para si mesmas. Vemos composições belíssimas, mas que ainda obedecem a um naturalismo em diálogo com as temáticas concretas do filme. Em termos de enquadramentos propriamente ditos, são notáveis aqueles que ajudam o diretor a reforçar pontos e dinâmicas da história. Em certo momento, no começo do longa-metragem, Martha e Ingrid estão relembrando o passado, e vemos close-ups muito fechados de cada uma, cortando a parte de cima dos rostos das personagens, de modo a ressaltar a incompletude das personagens e as lacunas que foram deixadas para trás – principalmente na vida de Martha. Em outro instante, já mais adiante, as protagonistas estão em uma livraria, e vemos ambas exatamente entre as prateleiras “Ciência” e “Religião”, justamente as duas instâncias que tentam, há milênios, explicar e reverter a morte.
“O Quarto ao Lado” não tenta explicar coisa alguma, mas admite a inevitabilidade da morte e, diante disso, a necessidade de se viver e partir ao lado do que e de quem é importante para nós. Como a personagem de Julianne Moore a certa altura defende, no que parece ser a frase-síntese do filme, “Há muitas formas de viver dentro de uma tragédia”, seja ela pessoal ou coletiva. Ou, em outras palavras, talvez seja possível encontrar beleza no fim. Não por acaso, algumas referências pictóricas ao longo do filme lidam com essa dialética. O estadunidense Edward Hopper, um dos maiores artistas plásticos a retratar a solidão e o fatalismo, e pessoalmente meu artista visual preferido, tem um quadro seu pendurado na casa para onde as personagens se mudam temporariamente. A pintora britânica Dora Carrington, que interrompeu a própria vida após a morte de um grande amigo, por sua vez, é tema de um livro escrito por Ingrid
O filme é, por isso, uma sensível e poética meditação em torno da vida, da morte e da presença, embalada pela trilha de cordas sempre encantadora de Alberto Iglesias. Em um de seus momentos mais bonitos, vemos Ingrid e Martha rindo juntas ao verem Buster Keaton escapando reiteradas vezes da morte. Não deixa de haver uma ironia nessa cena, na medida em que a própria Martha está caminhando em direção ao fim da vida. Porém, esta é a escolha da personagem, e seu percurso é narrado de uma maneira tão delicada e afetiva quanto somente Almodóvar seria capaz de conceber. Aqui, porém, o cineasta nos apresenta uma face diferente de si. Talvez por estar ele próprio repassando sua carreira e sua vida já há algum tempo, o diretor traz um estilo ainda mais maduro, conciso e reflexivo, que pode não agradar aos fãs mais devotos do diretor. A certeza, porém, é que ele está mais vivo do que nunca, e que, com “O Quarto ao Lado”, um novo Almodóvar bate à porta.
Jornalista formado pela UFMG e crítico de cinema, aproveita qualquer oportunidade para falar sobre sua paixão, a sétima arte. Com passagem pelo Curso Técnico em Química do CEFET-MG, iniciou os estudos de forma bem parecida com o começo do próprio cinema: em um laboratório manipulando substâncias químicas. Por quase dois anos, foi estagiário na RecordTV Minas, tendo uma rotina quase tão louca quanto a dos protagonistas de “Rede de Intrigas”. Participou do 6º Talent Press Rio e integrou a Assessoria de Comunicação da Fundação Clóvis Salgado, em Belo Horizonte.