"Ainda Estou Aqui" (2024), de Walter Salles - Foto: Alile Dara Onawale
Foto: Alile Dara Onawale/Divulgação

“Ainda Estou Aqui”: um drama cheio de potência e emoção

Que o cinema é feito de histórias contadas através de imagens a gente já sabe. Mas, às vezes, o enredo é narrado sem ilustrar na tela o seu principal conflito. É uma escolha audiovisual corajosa e que pode trazer ainda mais profundidade à obra. Em “Ainda Estou Aqui”, essa opção do diretor Walter Salles resulta em um drama cheio de potência e emoção.

O longa é ambientado no início da década de 1970, no Rio de Janeiro. O Brasil está enfrentando o endurecimento da ditadura militar, enquanto a família Paiva, formada pelo pai Rubens (Selton Mello), Eunice (Fernanda Torres) e seus cinco filhos, leva uma vida de classe média alta, em sua casa à beira mar. Em uma tarde que parecia ser mais uma como tantas outras, enquanto o casal jogava gamão como de costume, militares à paisana entram na residência e levam o patriarca. Advogado e ex-deputado, Rubens sai para “prestar um depoimento”, mas não retorna. Eunice, então, é forçada a reinventar o seu futuro e de seus filhos ao mesmo tempo em que busca saber a verdade sobre o destino de seu marido.

O longa é baseado no livro de mesmo nome escrito por Marcelo Rubens Paiva (no filme interpretado por Guilherme Silveira quando criança e por Antonio Saboia na fase adulta). A obra literária é inspirada na vida real da família Paiva. Nas mãos de Murilo Hauser e Heitor Lorega, o roteiro adaptado foi premiado no Festival de Veneza com uma narrativa bem construída, emocionante e completa, sem pontas soltas ou perguntas sem respostas — a não ser questões deixadas ali de maneira proposital.



"Ainda Estou Aqui" (2024), de Walter Salles - Foto: Alile Dara Onawale
Foto: Alile Dara Onawale/Divulgação

O primeiro ato da trama é apresentado de uma forma que fica claro o bonito e importante arco familiar dos Paiva. Há amor entre os irmãos, pais e também entre os amigos que estão sempre presentes. Momentos regados a whisky, boa comida, conversas e música são constantes no início do filme, trazendo à tela como aquele grupo de pessoas é feliz com suas vidas. E a construção dos personagens é feita de maneira sutil: desde o interesse da filha Eliana (Luiza Kosovski) pelos noticiários de TV que cobrem a situação do regime militar, até a decisão de Vera (Valentina Herszage) em cursar sociologia na faculdade.

Os diálogos dos amigos sobre os sequestros realizados na época, e até mesmo a preferência do pai por música brasileira, sendo colecionador de discos de artistas como Caetano Veloso, já encaminham a narrativa para a segunda parte do filme, quando Rubens é levado pelos agentes da ditadura.

Na cena em que ele se despede de Nalu (Bárbara Luz), é nítido que não irá retornar, e essa suposição surge devido ao que nos foi mostrado sutil e organicamente até ali. Esta mesma cena dá início à uma sequência que escancara a atuação incrível de Selton Mello: ele age de forma natural com sua filha, em um diálogo simples e amoroso, desce as escadas, despede-se de Eunice demonstrando confiança e calma durante a situação, e diz à esposa que tudo ficará bem e que logo mais estará em casa. Antes de Rubens entrar no carro e acompanhar os militares, nota-se, no olhar de Mello, que ele sabe que aqueles são seus últimos segundos com a família.

"Ainda Estou Aqui" (2024), de Walter Salles - Foto: Alile Dara Onawale
Foto: Alile Dara Onawale/Divulgação

A partir daí, toda essa falsa calma, frieza e emoções retraídas se transferem para Eunice. Também levada para prestar depoimento alguns dias depois, ela passa dias presa em uma solitária, respondendo a perguntas capciosas, sem ver a luz do dia, tomar um banho ou se alimentar direito. Além disso, é ameaçada psicologicamente pelos oficiais, que não respondem sobre a condição de seu marido ou de Eliana, tirada de casa junto com a mãe.

Mesmo depois de passar por tudo isso, ao sair do quartel e ir para casa, a matriarca não desmorona: ao chegar em seu lar, confere se os filhos estão bem e vai para o banho. Em uma cena emocionante e silenciosa, ela retira a sujeira do corpo, deixa a água cair e, mesmo em um momento propício para demonstrar vulnerabilidade, não se rende ou se desespera. E isso segue durante todo o filme.

Fernanda Torres está impecável em “Ainda Estou Aqui”. Sua personagem passa dois terços do longa com a raiva, tristeza, angústia e medo a acompanhando, e ela consegue representar esses sentimentos sem nenhuma cena explosiva: não há desespero, crise de choro, gritos ou fúria. Nem sequer um abraço em alguém para ilustrar seu cansaço e temor. Durante o filme inteiro, só existem momentos em que ela deixa as lágrimas caírem, mas ainda sim parecendo que ela nem percebe que isso acontece.

"Ainda Estou Aqui" (2024), de Walter Salles - Foto: Alile Dara Onawale
Foto: Alile Dara Onawale/Divulgação

Enquanto vê sua vida desmoronar, com o desaparecimento sem respostas de Rubens, seus momentos traumáticos vividos enquanto estava presa ou ao ver sua família sendo vigiada 24 horas por policiais à paisana, mesmo com tudo isso, não há um momento em que Eunice transborde. E Torres consegue transportar tudo isso para a tela: está tudo ali dentro, sufocado, e esse aperto no peito acompanha a personagem e também o espectador durante toda a trama.

Como protagonista, a atriz tem mais tempo para mostrar seu trabalho, mas é preciso ressaltar que todo o elenco de “Ainda Estou Aqui” se destaca em suas atuações. Desde os filhos crianças e adolescentes, até os amigos da família: todos entregam interpretações importantes e que transparecem verdade. Um exemplo é Humberto Carrão (dando vida ao jornalista Félix), cuja expressão corporal ao dar a notícia que Eunice não queria ouvir é cheia de sentimento. O mesmo acontece quando Baby Bocayuva (interpretado por Dan Stulbach) revela à Eunice o que Rubens fazia e por quê ele foi preso. Até mesmo os atores com poucos minutos de tela atuam com intensidade, como Carla Ribas, intérprete da professora Martha, ao contar à Eunice que esteve com Rubens na prisão.

Outro destaque deste mais novo trabalho de Walter Salles (que retorna à direção após 12 anos desde seu último longa de ficção, “Na Estrada”) é a direção de arte, assinada por Carlos Conti. A cenografia do longa é fundamental para a trama ao fazer o contraste que o Rio de Janeiro transmite na obra. A todo momento, nós somos impactados pela beleza da cidade que é palco para a vida de uma família feliz, mas, ao mesmo tempo, podemos ver a poluição visual repulsiva quando o assunto é a ação da polícia militar. A casa de frente para o mar traz a sensação de paz, conforto e alegria, o oposto do medo, perigo e raiva gerados nas cenas ambientadas no quartel, por exemplo. A penumbra na fotografia do argentino Adrian Teijido (“Marighella”) também é fundamental para criar a atmosfera de absoluta tensão que toma conta da família.

"Ainda Estou Aqui" (2024), de Walter Salles - Foto: Alile Dara Onawale
Foto: Alile Dara Onawale/Divulgação

A história de “Ainda Estou Aqui” é narrada em meio a esse período de mortes e torturas no Brasil, mas a violência física sofrida pelas vítimas não é colocada em tela em forma de imagens. Sabemos o que se passa ali, o que provavelmente aconteceu com Rubens, o motivo disso ter acontecido e que o crime ficaria impune. O embrulho no estômago que sentimos ao longo do filme vem daí: ver Eunice sem respostas, acompanhar sua decisão em não falar do assunto com os filhos e esconder o que está acontecendo de todos, tentando viver a vida normalmente, é compreensível e doloroso.

“Ainda Estou Aqui” é um filme emocionante, bonito e sensível a ponto de dar um nó na garganta. Dá vontade de sair do cinema e expulsar essa sensação de angústia, dar um grito de desespero. Dá vontade de fazer isso por Eunice, que não o faz nem mesmo no final, quando é interpretada por Fernanda Montenegro na velhice. O fim da personagem é em silêncio, com a curta, mas poderosa participação da veterana atriz trazendo muita emoção, sem ela dizer uma palavra sequer.

Encerrar o filme ao som de “É Preciso Dar um Jeito”, de Erasmo Carlos, é uma escolha que coroa a genialidade de Walter Salles. Além do significado da música para aquela época de tantas injustiças e crimes, a letra casa perfeitamente com o destino de Rubens, remetendo ao que Baby diz à Eunice: não tem como não fazer nada. ■

Nota:

AINDA ESTOU AQUI (2024, Brasil, França). Direção: Walter Salles; Roteiro: Murilo Hauser, Heitor Lorega (baseado no livro de Marcelo Rubens Paiva); Produção: Maria Carlota Bruno, Rodrigo Teixeira, Martine de Clermont-Tonnerre; Fotografia: Adrian Teijido; Montagem: Affonso Gonçalves; Música: Warren Ellis; Com: Fernanda Torres, Selton Mello, Valentina Herszage, Barbara Luz, Luiza Kosovski, Guilherme Silveira, Cora Mora, Pri Helena, Humberto Carrão, Charles Fricks, Dan Stulbach, Daniel Dantas, Helena Albergaria, Isadora Ruppert, Carla Ribas, Thelmo Fernandes, Caio Horowicz, Maeve Jinkings, Olivia Torres, Maria Manoella, Marjorie Estiano, Antonio Saboia, Fernanda Montenegro; Estúdio: VideoFilmes, RT Features, MACT Films; Distribuição: Sony Pictures; Duração: 2h 17min.

Onde ver "Ainda Estou Aqui" no streaming: