Há uma constante sensação de déjà vu – literalmente, de algo já visto antes – que perpassa as duas horas de “Blitz”. Há a jornada e o desejo desesperado de um protagonista, que se perde por acidente, de reunir-se com a sua família, já encenados pelo cineasta Steve McQueen no oscarizado “12 Anos de Escravidão”. Há uma cena de dança, encharcada da energia e da alegria do povo negro mesmo em meio ao caos e à violência ao redor, que remete inevitavelmente ao sublime “Lovers Rock”, também de McQueen. E há, claro, o contexto histórico do blitzkrieg, o ataque alemão incessante à cidade de Londres no início da Segunda Guerra, que já foi exaustivamente retratado no cinema – desde o clássico “Rosa da Esperança” aos mais recentes “Esperança e Glória” e “Desejo e Reparação”.
E o que torna o longa da Apple TV+ tão fresco e envolvente, ainda que pouco original, é o que se convencionou chamar no cinema de “autoria”: o talento e a capacidade de um diretor de retratar um universo ou uma história já conhecida a partir de sua sensibilidade e seu olhar específicos. “Blitz” é, sim, um filme de Segunda Guerra, passado na Inglaterra, sobre o sofrimento do povo britânico sob o bombardeio nazista. Mas é um filme de Segunda Guerra, passado na Inglaterra, em que existem raça, classe social, diferenças de experiências e de idades que conferem ao longa uma perspectiva pouco – ou quase nunca – vista sobre esse episódio tão conhecido da história do século XX.
O filme segue o pequeno George (Elliott Heffernan), enviado pela mãe, Rita (Saoirse Ronan), junto com outras crianças ao interior do país, para se protegerem da blitz do título. A despedida entre os dois é difícil e, arrependido de ter dito à mãe que a odiava antes do trem partir, o protagonista salta do vagão no meio da viagem e decide retornar – sozinho – a Londres para lhe pedir desculpas.
É o início de uma longa jornada que mistura o caráter episódico e incidental da “Odisseia” de Homero a uma sensibilidade quase miyazakiana de mergulhar uma criança num universo de monstros e barbárie que representa, em certa medida, o mundo adulto. Em “Blitz”, vemos a Segunda Guerra pelo olhar inocente e indefeso de George e – mesmo sem lançar mão de imagens mais gráficas ou explícitas de carnificina e sanguinolência (não é nisso que ele está interessado) – ao justapor o que talvez seja o desejo humano mais primal, o de um menino de retornar ao colo da mãe, à violência implacável e indistinta do conflito, o filme explicita o total absurdo e ausência de sentido do confronto armado.
Há, claro, um certo grau de manipulação emocional nisso, mas o que distingue o longa de um mero exercício spielbergiano genérico é a riqueza social com que McQueen, assinando também o roteiro, constrói o seu universo. George é negro, e isso é uma questão muito importante não só na trama, mas na forma como ele navega pelos espaços e é tratado por quem encontra. Mais do que isso: ele não é o único negro no filme. Na Inglaterra de McQueen, ao contrário de 98% dos filmes britânicos e de Segunda Guerra, não existem só pessoas brancas – e isso causa atritos e influencia até mesmo em quem tem direito a se proteger, e onde.
Rita, a mãe do protagonista, por sua vez, é uma jovem operária, trabalhando na produção de armas ao lado de outras mulheres. Se o visual, maquiagem, figurino, e o próprio nome da personagem deixam clara a referência ao glamour e à ideia de feminilidade de Rita Hayworth, a justaposição disso ao fascínio de McQueen pelas máquinas e pelos planos de como elas funcionam e são operadas (lembrando os planos das engrenagens do barco em “12 Anos de Escravidão”) demonstram como a guerra é também uma indústria, uma grande máquina, e como as mulheres não foram meras vítimas sofrendo em casa, mas também fizeram parte dessa engrenagem.
E não só isso: o mero fato de Rita ter tido um filho com um homem negro já faz dela uma personagem mais interessante, ou menos usual, nesse tipo de filme, bem como o fato de ela ser uma cantora – com Ronan mostrando que, além de boa atriz, também tem uma bela voz. A música, por sinal, é um dos aspectos mais interessantes e originais do longa, aparecendo intermitentemente como um instrumento de resistência e da insistência da beleza da arte diante da violência e da barbárie, assim como em “Lovers Rock”. Além de alguns interlúdios musicais – um dos mais belos protagonizado pelo soldado Ife (interpretado de forma sublime pelo cantor inglês Benjamin Clémentine), com quem o pequeno George se encontra na sua jornada – a própria trilha original de Hans Zimmer, uma das melhores do compositor nos últimos anos, é fundamental na condução da intrépida odisseia do pequeno protagonista, imprimindo sempre na tela a coragem e a esperança do garoto mesmo diante das piores adversidades.
Dito isso, “Blitz” não é sem seus defeitos. O filme é estruturado numa montagem paralela entre as jornadas de George e de Rita, e a parte da mãe não é tão bem realizada quanto a do filho – o galãzinho do momento Harris Dickinson, por exemplo, é desperdiçado com um personagem que não tem absolutamente nada para fazer, a não ser um flerte esquisito e mal resolvido com a personagem de Ronan. Há também uma elipse um pouco estranha numa sequência fundamental no clímax do longa que, junto com o personagem de Dickinson e o flashback com a (breve) história do pai de George, sugerem que McQueen deve ter se digladiado com o filme na ilha de montagem e deixado muita coisa de fora.
Ainda assim, a produção funciona, não se estendendo para além da conta nem querendo ser mais do que é, triunfando principalmente nos closes e na atuação estupenda do estreante Elliott Heffernan. O ator é um daqueles achados que só um cineasta do calibre de McQueen é capaz de encontrar e, no seu rosto expressivo e inocente, o cineasta escreve a história que quer contar: o momento em que a dita modernidade perde sua inocência, sua infância, dando lugar à tal pós-modernidade e a uma crise de identidade que a humanidade não conseguiu superar até hoje. ■
BLITZ (2024, Reino Unido, EUA). Direção: Steve McQueen; Roteiro: Steve McQueen; Produção: Steve McQueen, Tim Bevan, Eric Fellner, Arnon Milchan, Michael Schaefer; Fotografia: Yorick Le Saux; Montagem: Peter Sciberras; Música: Jonas Sá; Com: Saoirse Ronan, Elliott Heffernan, Harris Dickinson, Benjamin Clementine, Kathy Burke, Paul Weller, Stephen Graham; Estúdio: Apple Studios, New Regency, Working Title Films, Lammas Park; Distribuição: Apple TV+; Duração: 2h.
Onde ver "Blitz" no streaming:
Crítico de cinema desde 2004, filiado à Abraccine e à Fipresci. Jornalista e mestre em Cinema pela Universidade da Beira Interior, em Portugal, onde atualmente cursa o doutorado em Media Artes com pesquisa sobre cinema queer contemporâneo, financiada pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT). É votante internacional do Globo de Ouro e já integrou o júri da crítica em festivais dentro e fora do país.