Luca Guadagnino realizou um dos grandes romances gays do século XXI com o memorável “Me Chame pelo seu Nome”. E dirigiu um dos filmes mais sexys de 2024, a partir do bom roteiro de Justin Kuritzkes (o marido de Celine Song, vivido por John Magaro em “Vidas Passadas”), com o divertido “Rivais”. Em “Queer”, o cineasta italiano tenta articular essas duas boas experiências, provando que, em termos de cinema, a soma de dois fatores pode ser, sim, menor que o valor individual de cada um deles.
A adaptação do romance semiautobiográfico do ícone beatnik William S. Burroughs não possui nem aquela beleza inefável de um amor arrebatador que contaminava todos os elementos de “Me Chame”, nem a sensualidade e a química irresistíveis de “Rivais”. O filme sofre com o atrito, destrutivo e não criativo, entre a sensibilidade cinematográfica de Guadagnino e a narrativa fragmentada e os arroubos lisérgicos de Burroughs, que o roteiro de Kuritzkes não consegue adaptar e editar de forma coesa – a exemplo do que o vencedor do Oscar James Ivory fez com a obra de André Aciman em “Me Chame”. O resultado é uma série de bons ingredientes que parecem atirar cada um para um lado, num todo desconjuntado que nunca se encaixa de forma harmônica para contar a mesma história.
“Queer” narra a paixão e a atração febril de William Lee (Daniel Craig), escritor e alter-ego de Burroughs vivendo na Cidade do México nos anos 1950, pelo jovem e misterioso Eugene Allerton (Drew Starkey). Eugene é uma esfinge etérea e uma miragem inalcançável que Lee deseja não apenas tocar ou possuir, mas penetrar e desvendar. E a impossibilidade disso é o que torna o jovem uma conquista obsessiva para o protagonista e uma metáfora nada sutil para seu vício em heroína – a famosa “caçada ao dragão” que o usuário da droga busca incessantemente após o prazer sentido na primeira vez que a injeta.
Não por acaso, as duas imagens mais bonitas e icônicas do filme são a representação desse desejo incontrolável de Lee de penetrar Eugene, literal e figurativamente. A primeira é o plano da mão trêmula do protagonista tentando de forma hesitante tocar o corpo do jovem após o sexo, como que incerto de ter desvendado os sentimentos do parceiro mesmo depois da relação carnal. E a segunda é o belo pas de deux contemporâneo dançado pelos dois personagens durante a sequência em que tomam ayuhasca, único momento em que a fotografia de Sayombhu Mukdeeprom e a montagem de Marco Costa permitem a Lee, ainda que de forma quimérica, cinematográfica e lisérgica, realizar seu sonho de penetrar e tornar-se uno com seu objeto de desejo.
Starkey faz o melhor que pode com um personagem que é, não só esse objeto, mas acima de tudo uma esfinge que começa e termina o filme sem ser totalmente decifrada. Guadagnino coloca o espectador no ponto de vista de Lee, ou seja, nunca capaz de completamente desvendar ou entender as intenções e a natureza do desejo de Eugene. O ator mantém de forma competente essa aura de mistério e o poder da atração que seu personagem exerce sobre o protagonista, mas é uma performance – não por demérito do ator – que tem seus limites.
Já Craig dá um passo além nos maneirismos queer que ele já vinha ensaiando com o Benoit Blanc da franquia “Knives Out”. Seu Lee é um poço de suor, trejeitos e falta de compostura e autocontrole, com que o ator não só desconstrói o ideal de masculinidade que passou anos erigindo como James Bond, mas que revela o poder quase tóxico que Eugene – e a heroína – têm sobre ele. O protagonista não ama, ele se submete a um desejo que o consome por completo: sua identidade, sua dignidade e seu domínio sobre sua mente e seu corpo.
É uma performance que beira, mas não ultrapassa, o caricatural – algo que não pode ser dito de um péssimo Jason Schwartzman, interpretando um gay afeminado que não é só profundamente homofóbico e ofensivo na sua atuação rasa e afetada, mas um personagem absolutamente desnecessário que só serve para fazer comentários e fofocas expositivos e infinitamente menos engraçados do que o roteiro de Kuritzkes imagina que eles são. Pior ainda, na sua relação torpe e desrespeitosa com os homens locais, ele acentua os aspectos mais problemáticos do livro de Burroughs e do filme de Guadagnino.
O problema dessas três performances tão opostas em seus tamanhos e métodos é que elas parecem pertencer a três filmes totalmente diferentes. Junte-se a elas uma Cidade do México estilizada, construída nos estúdios da Cinecittà em Roma, que não tenta reproduzir a capital mexicana, mas um lugar imaginado, inventado por sujeitos queer norte-americanos dos anos 1950 para fugirem de uma realidade violentamente homofóbica e heteronormativa e poderem ser quem eram – leia-se, usar drogas e foder à vontade, sem medo de serem presos por isso. Guadagnino descontrói esse design de produção de Stefano Baisi, que remete à masculinidade da cidade do Velho Oeste do western, com uma trilha musical dissonante e anacrônica, que mistura Sinéad O’Connor e Nirvana e provoca no espectador a constante sensação de que algo (ou tudo) ali não é real, é estranho, é provavelmente uma viagem lisérgica nada confiável.
Essa impressão é elevada à enésima potência na segunda parte do filme, em que Lee e Eugene partem para a América do Sul na tentativa de encontrarem uma cientista (vivida inusitadamente por Lesley Manville) que os apresente à ayuhasca que o protagonista deseja experimentar. É quando o cineasta italiano tenta render o seu cinema à natureza mais lisérgica e abstrata da literatura beatnik, com resultados bons (a sequência de dança citada acima) e outros nem tanto (a crise de abstinência de Lee, pouco desenvolvida e que vai do nada ao lugar nenhum). O real problema, porém, é que “Queer” parece se tornar mais um outro filme, que não sabe muito bem o que é, assim como o outro não sabia, e Manville entregando mais uma performance “exótica” que pertence a um outro longa (potencialmente mais interessante).
Curiosamente, essa estrutura narrativa do roteiro – garoto encontra garoto, viagem idílica, seguida de um epílogo – é exatamente a mesma de “Me Chame pelo seu Nome”. É como se Guadagnino tentasse repetir a magia de um verão perfeito de férias numa casa dos sonhos na Itália, e acabasse numa viagem – errada – em que drogas não muito confiáveis transformassem um estúdio em Roma numa versão lisérgica, e nada agradável, da América Latina. ■
QUEER (2024, Itália, EUA). Direção: Luca Guadagnino; Roteiro: Justin Kuritzkes (baseado no livro de William S. Burroughs); Produção: Lorenzo Mieli, Luca Guadagnino; Fotografia: Sayombhu Mukdeeprom; Montagem: Marco Costa; Música: Trent Reznor, Atticus Ross; Com: Daniel Craig, Drew Starkey, Jason Schwartzman, Henrique Zaga, Lesley Manville; Estúdio: Fremantle North America, The Apartment Pictures, Frenesy Film Company; Distribuição: A24, Paris Filmes; Duração: 2h 17min.
Onde ver "Queer" no streaming:
Crítico de cinema desde 2004, filiado à Abraccine e à Fipresci. Jornalista e mestre em Cinema pela Universidade da Beira Interior, em Portugal, onde atualmente cursa o doutorado em Media Artes com pesquisa sobre cinema queer contemporâneo, financiada pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT). É votante internacional do Globo de Ouro e já integrou o júri da crítica em festivais dentro e fora do país.