Noventa porcento da tensão e da condução narrativa de “Conclave” vêm de sua trilha musical. Sério, experimente assistir ao filme no “mudo”, ou com fones de ouvido isolando o áudio: provavelmente vai parecer um documentário pouco interessante dirigido por um estudante de cinema. Já com os acordes compostos pelo alemão Volker Bertelmann, que ganhou um Oscar por sua parceria anterior com o cineasta Edward Berger, “Nada de Novo no Front” (e pode repetir a façanha na próxima cerimônia), mesmo as ações mais banais encenadas pelos cardeais do filme – seja escovar os dentes, ou atravessar um corredor – ganham uma intensidade dramática monumental, como se qualquer cena antecipasse um assassinato ou uma grande reviravolta.
Parte dessa centralidade da música se deve ao fato de que a direção e as imagens criadas por Berger são competentes, mas nada além disso. O diretor de fotografia francês Stéphane Fontaine (“Jackie”) até tenta criar alguns planos interessantes, como os constantes plongées para transmitir a sensação de que Deus está observando os personagens, ou os enquadramentos abertos contra os cenários grandiosos, ressaltando a humanidade dos personagens diante da dimensão divina da instituição em que trabalham – mas eles logo se tornam repetitivos.
O resultado é a sensação constante de que “Conclave” é uma minissérie da Netflix que tem o bom senso de durar apenas duas horas. Não se engane: o filme é bem divertido, com aquelas tramas rocambolescas de livro gostoso pra ler nas férias e na praia – no caso, o romance original do autor Robert Harris. O conclave do título, em que o cardeal Lawrence (Ralph Fiennes, impecável como de costume) coordena a cúria responsável pela eleição do próximo papa após a morte repentina do anterior, reproduz com competência o melhor do clima de intriga, traições e ganância de “House of Cards” e “Game of Thrones” – só que com hóstias no lugar de dragões.
A trama segue uma série de ascensões e quedas no favoritismo ao “trono”. Numa minissérie, cada cardeal subindo no quadro de apostas ganharia o seu episódio, mas Berger e o longa condensam tudo satisfatoriamente em duas horas graças, especialmente, ao bom elenco – que inclui nomes como Stanley Tucci, John Lithgow e Isabella Rossellini. O ritual do conclave não é nada mais que um teatro episcopal, e o elenco entende isso perfeitamente, justapondo a coreografia dos ritos religiosos, em que os personagens usam suas máscaras representadas pelo figurino eclesiástico, aos momentos em que elas caem nos arroubos de ambição e ira das negociações de bastidores.
O aspecto mais interessante do roteiro é o retrato honesto de como nenhum dos homens ali reunidos é bom. Simplesmente porque não se chega àquele nível de poder e status – seja na igreja, na política ou em qualquer outra instituição – sem trocas de favores, usos e abusos de privilégios, acordos escusos e a venda (ou ao menos o aluguel) da alma ao diabo. Em suma: não se chega ali sem ambição. E o maior defeito do filme é, depois de 1h30 desse olhar clínico e cínico, tentar convencer o espectador de que toda essa amoralidade dos personagens é curada e expiada com um mero discurso idealista de poucos minutos.
Com isso, o olhar e a crítica que o longa tenta fazer sobre a hipocrisia, o machismo, o racismo, o eurocentrismo e todas as demais incoerências do catolicismo são esvaziados por uma conclusão simplista e inverossímil. O roteiro ainda conta com uma reviravolta final que até Gilberto Braga teria vergonha de escrever, numa tentativa de sublimar e subverter uma das maiores injustiças e falhas históricas da igreja, só que de forma rasa e sem o mínimo de nuance.
Essa coerência, sutileza e complexidade que faltam ao filme sobram, porém, na – divina – performance de Ralph Fiennes. Presente em praticamente todas as cenas de “Conclave”, seu cardeal Lawrence é um homem que desde o início afirma ter perdido parte de sua fé na igreja, o que faz dele um animal político implacável. Sem essa suposta confiança dogmática na eficácia dos rituais que deve dirigir, o protagonista trama, investiga, manipula, chantageia e subverte todas as regras para garantir o que acredita ser o melhor resultado daquela eleição. E Fiennes acerta cada nota com perfeição, cada entonação, cada olhar de julgamento e conspiração, ao mesmo tempo em que evidencia o peso que isso vai tendo sobre Lawrence, tornando-o mais encurvado e corcunda com o passar dos dias. Credite-se a ele os 10% restantes na matemática citada no primeiro parágrafo, e não se assustem se eles renderem ao ator o – merecido – primeiro Oscar de sua carreira. ■
CONCLAVE (2025, Reino Unido, EUA). Direção: Edward Berger; Roteiro: Peter Straughan (baseado no livro de Robert Harris); Produção: Tessa Ross, Juliette Howell, Michael Jackman, Alice Dawson, Robert Harris; Fotografia: Stéphane Fontaine; Montagem: Nick Emerson; Música: Volker Bertelmann; Com: Ralph Fiennes, Stanley Tucci, John Lithgow, Sergio Castellitto, Isabella Rossellini; Estúdio: FilmNation Entertainment, House Productions, Indian Paintbrush; Distribuição: Diamond Films; Duração: 2h.
Onde ver "Conclave" no streaming:
Crítico de cinema desde 2004, filiado à Abraccine e à Fipresci. Jornalista e mestre em Cinema pela Universidade da Beira Interior, em Portugal, onde atualmente cursa o doutorado em Media Artes com pesquisa sobre cinema queer contemporâneo, financiada pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT). É votante internacional do Globo de Ouro e já integrou o júri da crítica em festivais dentro e fora do país.