Ao longo das décadas, o cinema de horror se especializou em contar histórias complexas, envolvendo diversos personagens, ao longo de vários dias (ou meses, ou anos), em múltiplos cenários e com intrincados desdobramentos. Mesmo obras-primas mais discretas como “A Noite dos Mortos-Vivos” (1968) e “Halloween – A Noite do Terror” (1978), que transcorrem ao longo de 24 horas em uma localidade específica, reúnem diversos personagens no enfrentamento ao inimigo da vez. Quanto mais pessoas envolvidas, mais dramas individuais e relacionamentos interpessoais precisam ser desenvolvidos. Com o cinema de forma geral mais e mais dominado por derivados (sequências, reboots, spin-offs), cada um almejando ser maior em escala do que os anteriores, torna-se ainda mais difícil encontrar, então, filmes de terror focados na simplicidade e na contenção. Para aquelas que apostam nessas características, no entanto, o teor concentrado pode dar origem a uma intensidade dramática grandiosamente eloquente.
É o caso de “Lobisomem” (2025), filme dirigido por Leigh Whannell, ator, escritor e cineasta famoso pelo envolvimento nas franquias “Jogos Mortais” e “Sobrenatural” e pela realização de “O Homem Invisível” (2020), sua primeira e muito bem-sucedida incursão no terreno das releituras de clássicos da Universal. Cinco anos depois, Whannell traz um longa-metragem de horror puro, sem o elemento da ficção científica. É a história que todos conhecemos, reproduzida e adaptada por incontáveis civilizações: uma pessoa é golpeada por um lobisomem e sobrevive, mas acaba se transformando, durante as noites de lua cheia, na mesma criatura selvagem que a atacou. “O Lobisomem” (1941), “Grito de Horror” e “Um Lobisomem Americano em Londres” (ambos de 1981) são talvez os principais e mais influentes filmes desse subgênero, célebres tanto pela consolidação de uma mitologia quanto, no caso dos oitentistas, por sua maquiagem e efeitos especiais inovadores.
“Lobisomem” – reboot do clássico de 1941 –, por um lado se aproveita dessa mitologia, e por outro, traz uma representação diferente para o monstro. Na trama, o casal Blake (Christopher Abbott) e Charlotte Lovell (Julia Garner) partem de São Francisco para uma temporada na propriedade do falecido pai dele, no Oregon. O escritor propõe a viagem tanto para que eles recolham os pertences que ficaram na fazenda quanto como uma forma do casal se unir mais e de Charlotte, uma jornalista viciada em trabalho, ter mais tempo de se reconectar com a filha, Ginger (Matilda Firth), claramente mais ligada ao pai. Ciente do repertório do público, o filme vai direto ao ponto, e, antes de chegar ao destino, a família sofre um acidente ao desviar de um lobisomem na estrada e Blake é ferido pela criatura. Ainda inconscientes do perigo e da real natureza do ferimento, a família se abriga na fazenda. Mas o protagonista paulatinamente passa a se transformar, ele mesmo, em um lobisomem, ameaçando seriamente a vida de sua esposa e filha.
Mas o filme começa bem antes, em um breve prólogo. Trinta anos antes dos acontecimentos no presente, Blake e seu pai, Grady Lovell (Sam Jaeger) estão na mesma fazenda e saem para uma caçada. Temos então uma excelente sequência de abertura, notável principalmente por sua construção sofisticada de suspense. Através das três cenas, ficamos sabendo ainda da natureza rígida e protetora de Grady, que terá profunda influência em Blake. A forma como o pai acorda o garoto, o repreende verbalmente na floresta e mesmo olha para o filho com um olhar de censura quando ambos voltam à casa já é suficiente para estabelecer a relação tensa entre ambos e para colocar em evidência o tema da paternidade, que atravessa o filme. A “reviravolta” da trama (óbvia para o público, mas não para os personagens), afinal, é que Grady é o lobisomem responsável pelo acidente e pelo ferimento de Blake. A licantropia e o trauma são, ambos, passados de pai para filho.
Em uma das cenas desta primeira sequência, Grady e Blake estão caçando animais na floresta quando têm um primeiro encontro com um lobisomem, descrito pelo letreiro inicial como um trilheiro que se perdeu no vale onde fica a fazenda. Blake se distancia do pai, e, em certo momento, a câmera circula em volta do garoto, fazendo as vezes do próprio monstro e remetendo a um momento similar no início de “Um Lobisomem Americano em Londres”. Mas a habilidade de Leigh Whannell como diretor de horror fica evidente em seguida, quando Blake aponta a mira da arma para seu campo de visão, e, lentamente, a mira vai percorrendo o espaço em travellings laterais. Seria o momento ideal (e óbvio) para um jump scare, com o lobisomem aparecendo, enorme, preenchendo todos os quadrantes do círculo da mira. O diretor, entretanto, mostra apenas um vislumbre desfocado ao longe, escondido pela vegetação. Logo depois, Grady encontra o filho e ambos se escondem em um posto de observação. Novamente, vemos o ar saindo da boca da criatura vindo de vários pontos sucessivamente, e o caçador aponta a arma, mas o jump scare não vem. A distensão da expectativa do público, levado a antecipar um susto que por final não se concretiza, é crucial para aumentar o suspense tanto em torno da aparência da criatura quanto sobre o que acontecerá e como será quando ela de fato atacar.
Três décadas se passam, e Blake já é um homem adulto, com esposa e filha. A relação de amor e afetividade do personagem com Ginger é transmitida, sobretudo, pelo rosto gentil de Christopher Abbott, ator que particularmente gosto muito, particularmente no ótimo “Possessor” (2020). Neste início, Blake é representado como um pai amoroso, com um vínculo extremamente forte e um senso de proteção aguçado (embora excessivo) direcionado à filha. O olhar doce de Abbott, seu semblante ao mesmo tempo vulnerável e forte e a voz controlada contrastam diametralmente com sua interpretação animalesca e acuada após a transformação. Julia Garner, na outra ponta, também se vale de seu rosto expressivo para transparecer a relação com a filha e o marido. Quando todos estão na cabana, a montagem intercala uma conversa afetuosa de Blake e Ginger com close-ups de Charlotte, visivelmente preterida na relação da menina com os pais. É pela expressão entristecida da atriz que o filme reforça a insegurança já verbalizada por ela antes, quando põe em xeque seu papel como mãe em uma conversa com o marido. A personagem tem um arco dramático ascendente, ao finalmente se enxergar, no desfecho do filme, como importante para a filha. Blake, por sua vez, reproduz o destino do pai ao se converter em uma ameaça para Ginger, dando à sua forma animalesca a conotação dos perigos que homens monstruosos podem representar para esposas e filhas vítimas de violência.
Essa transformação do personagem vem de uma forma nova. Ao contrário de “Grito de Horror” ou “O Lobisomem Americano em Londres”, o filme de Whannell investe em uma mudança progressiva, porém não menos visceral. Tal qual em “A Mosca” (1986), referência declarada do diretor, Blake pouco a pouco vê seu corpo se modificar, como se estivesse com uma doença degenerativa. Seu comportamento também assume contornos selvagens. A direção se vale, magistralmente, da edição de som e da direção de fotografia para concretizar a nova natureza do personagem. Em uma cena muito bem concebida e executada, Blake ouve um ruído alto vindo do andar de cima da casa, que o faz acreditar (e a nós, o público, também), que o lobisomem está em um dos quartos. Mas, quando o personagem sobe e finalmente descobre a fonte do barulho, é revelado tratar-se de uma aranha andando pela parede. O som é, assim, usado de maneira subjetiva, como se estivéssemos experienciando aquela transformação junto com o personagem. Logo depois, ao encostar na parede depois de ter sido atacado novamente pelo lobisomem pela abertura da porta, todo o espaço ao redor de Blake se dissipa, tornando-se obscuro tal qual o sunken place de “Corra!”, como se a consciência do personagem estivesse se esvaindo.
Esses e outros recursos, como os ângulos holandeses representando a instabilidade psíquica de Blake, são usados recorrentemente, assim como as perspectivas, subjetiva do personagem e de sua família, e objetiva da câmera e dos diálogos transitando entre um ou outro ponto de vista/escuta. Em uma cena no porão, por exemplo, quando Charlotte tenta usar o rádio, a câmera gira em torno dos personagens, e vemos tanto o que mãe e filha veem quanto a visão cada vez mais distorcida (quase uma filmagem em negativo, com a textura e as cores drenadas da imagem) do pai transformado. Charlotte e Ginger não entendem Blake, e vice-versa – ao espectador, é dada a visão e a escuta privilegiada, aumentando o drama da situação, já que os personagens não conseguem se comunicar, e, por isso, ele não pode compartilhar seu sofrimento com elas, que não conseguem ajudá-lo.
A incrível maquiagem aplicada a Christopher Abbott também ajuda muito a construir de forma convincente (e dramática) a deterioração de Blake. Tanto o ferimento no braço, que fica cada vez pior – e rende uma das cenas mais angustiantes, com o personagem coçando violentamente a ferida –, quanto os dentes e unhas que ele vai perdendo são mostrados de forma muito naturalista. O mesmo acontece durante a transformação em si, quando vemos, tal qual em filmes passados, os ossos do personagem se reestruturando para formar o novo corpo. O desenho de som, em especial, cumpre papel fundamental aqui, tornando críveis e violentas as modificações internas que não estamos vendo. O que vemos claramente, desde muito cedo, é o rosto inchado e purulento do personagem, outro trabalho de maquiagem excelente, e que lembra muito aquele feito em Jeff Goldblum no filme de Cronenberg.
Muitos poderiam dizer, entretanto, que a concisão do filme implica em certa falta de densidade dos personagens e do conflito. De fato, o filme tem 1 hora e 43 minutos, mas não me incomodaria se chegasse às 2 horas, explorando mais a vida da família em São Francisco, as profissões do casal e a relação delas com suas personalidades e os desdobramentos da trama e talvez um respiro de felicidade familiar antes do aparecimento do lobisomem. Ocorre que a natureza quase aristotélica da trama – trata-se, afinal, de uma tragédia com unidade de tempo, espaço e ação – parece exigir que os roteiristas (Whannell e Corbett Tuck) retirem tudo que não seja absolutamente imprescindível da história. Tal qual o protagonista, levado à sua forma mais primal, “Lobisomem” é, conceitualmente, um filme de terror destilado ao nível mais essencial. O roteiro e a direção estabelecem a premissa do modo mais econômico possível, partindo logo para aquele que será o cerne do filme. A vida de classe média e as habilidades racionais que os personagens exercem em suas profissões de nada adiantarão. O pai de Blake não espera sequer que o filho pise em seu território protegido, investindo imediatamente contra a família. A herança familiar – repleta de vícios na relação parental –, de uma forma ou de outra, enfim chega.
“Lobisomem” é uma grata surpresa. Leigh Whannell se distancia tanto dos filmes clássicos do subgênero quanto da escala maior de seu “O Homem Invisível”. Com um elenco que, à exceção da monocórdica atuação de Matilda Firth, mantém a intensidade emocional das cenas sempre em um patamar elevadíssimo, o filme também impressiona pela facilidade com a qual aborda, alegoricamente, temas densos como paternidade e maternidade, culpa familiar e a insegurança perto daqueles que se ama. Não por acaso, o pai de Blake tem o mesmo nome do zelador assassino de “O Iluminado” (1980), outra inspiração aberta para o filme. Ginger, obviamente, referencia uma das personagens de “Ginger Snaps” (2000). E eu diria que param por aí as “homenagens” do diretor a filmes passados. “Lobisomem” tem vida própria, e conta sua história quase com a despretensão de um conto macabro de ninar. Nada mais inteligente. Afinal, em um subgênero que remonta pelo menos ao ano de 1913, às vezes menos é muito mais. ■
LOBISOMEM (Wolf Man, 2025, EUA). Direção: Leigh Whannell; Roteiro: Leigh Whannell, Corbett Tuck; Produção: Jason Blum; Fotografia: Stefan Duscio; Montagem: Andy Canny; Música: Benjamin Wallfisch; Com: Christopher Abbott, Julia Garner, Matilda Firth, Sam Jaeger; Estúdio: Blumhouse Productions, Cloak & Co.; Distribuição: Universal Pictures; Duração: 1h 43min.
Onde ver "Lobisomem" no streaming:
Jornalista formado pela UFMG e crítico de cinema, aproveita qualquer oportunidade para falar sobre sua paixão, a sétima arte. Com passagem pelo Curso Técnico em Química do CEFET-MG, iniciou os estudos de forma bem parecida com o começo do próprio cinema: em um laboratório manipulando substâncias químicas. Por quase dois anos, foi estagiário na RecordTV Minas, tendo uma rotina quase tão louca quanto a dos protagonistas de “Rede de Intrigas”. Participou do 6º Talent Press Rio e integrou a Assessoria de Comunicação da Fundação Clóvis Salgado, em Belo Horizonte.