"Nosferatu" (2024), de Robert Eggers - © Universal Pictures
"Nosferatu" (2024), de Robert Eggers - © Universal Pictures

“Nosferatu”: Um novo vampiro, paradoxal e agridoce

O que separa dois filmes lançados com mais de um século de diferença? Certamente, muitas coisas. “Nosferatu”, de Friedrich Wilhelm Murnau, estreou em 1922, quando o cinema ainda não havia completado nem mesmo 30 anos de existência. Os filmes falados e coloridos como conhecemos hoje ainda estavam por vir. Era a época das experimentações radicais tanto com a montagem quanto com elementos da mise-en-scène como o cenário. Décadas depois, André Bazin diria que 1928 marcava o apogeu da “arte muda”. O “Nosferatu” de Murnau surge, então, na juventude do cinema. Pois, 102 anos depois, Robert Eggers, o aclamado diretor de “A Bruxa” (2015), “O Farol” (2019) e “O Homem do Norte” (2022) decide retornar a este que é considerado, ao lado de “O Gabinete do Dr. Caligari” (1921), uma das bases do cinema de horror e um expoente do Expressionismo Alemão. “Nosferatu” entrou para a história também por ser uma adaptação não-autorizada (e a mais antiga à disposição) do romance “Drácula” (1897), de Bram Stoker. O fato de o filme ter sobrevivido até hoje, mesmo com um processo da esposa de Stoker e com a ordem de destruição das cópias, é um dos maiores milagres da sétima arte.

Mas, uma centena de anos depois, em um panorama cinematográfico totalmente diferente, o que se poderia acrescentar de inventivo à história de Conde Orlok/Drácula? O livro já foi adaptado pela Universal no clássico estrelado por Bela Lugosi (“Drácula”, de 1931), por Werner Herzog no lindíssimo “Nosferatu – O Vampiro da Noite” (1979), particularmente minha versão preferida, e por Francis Ford Coppola no suntuoso “Drácula de Bram Stoker” (1992). Isso sem contar as dezenas de outras adaptações, releituras e paródias que o livro já originou. Vivemos atualmente um momento do cinema de horror, e do cinema de uma forma geral, em que tudo parece já ter sido feito – dada a quantidade de remakes, prequels, spin-offs, sequências e franquias que aparecem à exaustão. O streaming é um desafio constante ao algoritmizar a experiências estética e servir como uma opção mais acomodada à ida ao cinema. A inteligência artificial coloca uma sombra sobre o futuro da criação artística.

Em meio a este contexto, o que o novo “Nosferatu”, lançado em uma temporalidade pós-pandêmica, tem a acrescentar à história já muito conhecida de Drácula, ao horror e ao cinema contemporâneo? Quero dizer, qual a novidade que justifica mais um filme, diante de tudo que já foi feito? No caso do filme de Robert Eggers, muito pouco. Não que a obra seja ruim. Pelo contrário: o “Nosferatu” de 2024 traz uma atmosfera sombria, com iluminação soturna e um crescente senso de ameaça. O elenco está em ótima forma. Temos imagens de forte simbolismo, e a figura do título assustadoramente interpretada pelo ator protagonista (Bill Skarsgård). Tudo isso, no entanto, já estava presente no filme original. O “Nosferatu” de Eggers é, portanto, um bom filme já feito de forma melhor anteriormente. Para mim, é também o longa-metragem mais fraco da carreira do diretor até aqui.



A trama, passada em 1838, narra a história de Thomas Hutter (Nicholas Hoult), agente imobiliário que, a pedido de seu chefe, viaja ao encontro de um novo cliente residente no Leste Europeu, Orlok. O conde, na verdade, é um vampiro milenar que espalha o terror na região de Wisborg, na Alemanha, e se apaixona por Ellen (Lily-Rose Depp), a noiva de Hutter. Albin Eberhart Von Franz (Willem Dafoe) e Herr Knock (Simon McBurney) fazem as vezes de Van Helsing e Renfield, respectivamente o oponente e o servo do vilão. Quem é familiar com a história de “Drácula” e do “Nosferatu” original notará muitos pontos similares deste novo filme com suas bases. A despeito de algumas mudanças nos nomes dos personagens e detalhes do enredo, o longa-metragem de Eggers preserva fundamentalmente a mesma estrutura e progressão de acontecimentos. A diferença mais notável aqui é no tom do filme.

Parece haver, sobretudo, um desejo do roteiro e da direção (ambos assinados por Eggers) de amplificar a densidade macabra dos acontecimentos. Muitas sequências, como aquelas na vila próxima ao castelo do conde e dentro da própria propriedade de Nosferatu, quase chegam à monocromia do preto e branco, dada a intensidade das sombras e a pouca iluminação disponível. Eis um grande acerto do filme: em uma época na qual muito se reclama da escuridão excessiva em filmes de horror, Eggers e seu diretor de fotografia, Jarin Blaschke (também parceiro do cineasta em “A Bruxa” e “O Farol”), conseguem se aproveitar muito bem das sombras e da baixa visão proporcionadas pela cinematografias. A paleta quase monocromática, afinal, ajuda a fazer com que o espectador se questione o tempo todo sobre o que está de fato vendo. Quando Hutter está no castelo, por exemplo, cada canto escuro parece ser o abrigo do Conde Orlok, e nosso olhar está constantemente perscrutando o quadro em busca do vilão. O próprio antagonista, por sua vez, aparece aqui de forma mais animalesca. Seu corpo é maior e mais deteriorado, sua voz assume um registro gravíssimo – e, portanto, mais ameaçador – e suas ações se tornam mais gráficas. É um trabalho de excelência o que Bill Skarsgård empreende, que combina a imponência de Max Schreck e o magnetismo de Gary Oldman, ao mesmo tempo que recusa a vulnerabilidade de Klaus Kinski e a elegância de Bela Lugosi.

"Nosferatu" (2024), de Robert Eggers - © Universal Pictures
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Elegância, porém, está por toda parte neste filme com altos valores de produção. Os cenários e figurinos são ricamente detalhados, colaborando para a construção de época ao mesmo tempo autêntica e estilizada. Nos interiores, o desenho de produção cria uma ambientação com móveis e objetos de cena que remetem ao século XIX. Já as externas, por vezes, retomam o expressionismo alemão, com estruturas tortas e angulosas. As roupas usadas pelos atores, por sua vez, têm uma exuberância digna dos filmes de época da Hollywood Clássica. De igual modo, a trilha musical enervante e aguda de Robin Carolan (principalmente as sequências de cordas) cria uma ambientação grandiosa e de presságio para as imagens, sobretudo a partir do início da jornada de Thomas à Transilvânia. Tanta opulência têm razão de ser: quando Orlok traz consigo ratos e a peste mortal para Wisborg, o contraste entre o belo e o hediondo é amplificado. Este é, afinal, como “Drácula” sempre foi, a seu modo, uma releitura de “A Bela e a Fera”. Ellen/Mina e Wisborg representam a vítima pura para a contaminação de Nosferatu. Não por acaso, uma das imagens mais emblemáticas deste filme é a sombra da mão gigante do vampiro pairando sobre a cidade. Mais uma vez, Eggers pega um conceito já presente no filme original e o amplia. Seu filme, afinal, tem pretensões mais grandiosas.

Quando Hutter chega à vila de ciganos perto do castelo, por exemplo, somos apresentados ao ambiente e às pessoas por meio de um plano longo, no qual os figurantes atravessam o quadro e passam por baixo da câmera em uma intrincada coreografia. A iluminação joga sombras pesadas sobre os atores, enquadrados diversas vezes em planos simétricos que impressionam pela plasticidade, ao melhor estilo do horror gótico. Várias cenas trazem um conteúdo gráfico mais acentuado, como quando Renfield come um rato vivo ou Nosferatu mata as filhas de Friedrich (Aaron Taylor-Johnson) e Anna Harding (Emma Corrin), o casal de amigos dos Hutter, como uma forma de vingança contra a resistência de Ellen. Durante uma espécie de possessão sofrida por Ellen, temos praticamente a recriação das cenas de exorcismo de “O Exorcista” (1973). A personagem chora sangue tal qual a figura de um filme de Lucio Fulci, e descobrimos que ela tem uma conexão pré-existente com Orlok. Fica implícito que Ellen, anos antes, invocou Orlok para preencher seu vazio afetivo, e que ambos se tornaram, de alguma maneira, amantes cujos encontros davam a ela mais prazer do que sua relação com o agora marido Thomas.

Sem dúvida, trata-se de um desenvolvimento interessante para a personagem. No entanto, é preciso pontuar, Eggers nunca vai fundo nesta proposta. A ligação intensa e doentia entre Ellen e Orlok soa fria, sem nem a metade do erotismo da versão de Coppola, por exemplo. Esta seria uma incrível oportunidade para um comentário, como há em “A Bruxa”, sobre cerceamento da liberdade sexual feminina. Mas, por mais convincente que esteja Lily Rose-Depp, falta também à personagem a agência e o protagonismo de Isabelle Adjani no filme de Herzog. Mesmo as declarações da atriz de que sua performance foi inspirada em “Possessão” (1981) parecem meramente publicitárias, uma vez que sua Ellen nunca tem a profundidade e as contradições de nenhuma das duas personagens interpretadas por Adjani.

"Nosferatu" (2024), de Robert Eggers - © Universal Pictures
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Se no “Nosferatu” de 1979 é Lucy quem toma a dianteira na luta contra o vilão, aqui a personagem de Rose-Depp apenas cumpre seu destino, novamente se sacrificando para livrar a cidade do mal, como no filme de 100 anos atrás. E, se considerarmos que a personagem se conectou ao Conde como uma forma de rebeldia diante de sua condição feminina na Europa do século XIX, seu ato traz apenas morte e destruição à cidade, e ela é punida com a morte no fim. Diferentemente de Thomasin, contudo, trata-se não de uma derrota com sabor de vitória. Ellen não tem uma trajetória ascendente, de libertação e realização, mas sim de purgação. Não ajuda o fato de Lily Rose-Depp ser uma atriz competente, mas que visivelmente ainda precisa desenvolver muito seu repertório dramático. Falta a ela a sutileza no olhar de Nicholas Hoult, a assertividade na voz de Willem Dafoe e a expressividade do rosto de Emma Corrin, seus colegas de cena.

O novo “Nosferatu”, diante disso, se apresenta como um filme paradoxal e agridoce: não é possível acusá-lo de baixa ou mesmo mediana qualidade. No entanto, a abordagem de Eggers coloca em xeque a própria existência do remake. Se um filme não consegue inovar diante de um material de um século atrás, com todas as novas possibilidades e permissões que a arte cinematográfica oferece hoje em dia, o que sobra? Não que a obra seja obrigada a prestar contas a seu predecessor. Mas um longa-metragem de 2024 não ser capaz de atingir a mesma força eloquente de um clássico do cinema silencioso, mesmo com os recursos da fala e da fotografia colorida (muito bem utilizados, é verdade, mas ainda dentro de um terreno previsível), coloca a obra em uma encruzilhada existencial.

Nem todo diretor parece ter a consciência, por exemplo, de Luca Guadagnino, que com seu remake de “Suspiria” trouxe uma novíssima visão e imprimiu sua personalidade na obra-prima de Dario Argento. Talvez, no entanto, seja importante que certas obras fundamentais sejam ressuscitadas de tempos em tempos, pelo menos para que cheguem a um novo público. O “Nosferatu” de 2024 termina com um imagem assombrosa, do vampiro já quase decomposto sobre o corpo sem vida de Ellen. É um lampejo final de criatividade que evidencia o potencial desperdiçado deste remake. Antes, no filme, a presença das filhas gêmeas do casal amigo dos protagonistas me remeteu imediatamente aos gêmeos de “A Bruxa”, lembrando-me que eu estava assistindo a um filme de Robert Eggers. A tensa discussão entre Thomas e Ellen, que termina com os dois fazendo sexo de forma animalesca, também me trouxe de volta o grande talento do realizador. Salvos esses breves instantes, o encontro dele com o clássico da história do cinema se mostrou para mim, porém, o filme menos autoral do cineasta. Diante do “Nosferatu” de Eggers, eu ainda prefiro as versões passadas. Embora provavelmente putrefatos pelo tempo, ironicamente os vampiros de Murnau e Herzog estão mais frescos do que nunca. ■

Nota:

NOSFERATU (2024, EUA). Direção: Robert Eggers; Roteiro: Robert Eggers (baseado no roteiro de Henrik Galeen e no livro de Bram Stoker); Produção: Jeff Robinov, John Graham, Chris Columbus, Eleanor Columbus, Robert Eggers; Fotografia: Jarin Blaschke; Montagem: Louise Ford; Música: Robin Carolan; Com: Bill Skarsgård, Nicholas Hoult, Lily-Rose Depp, Aaron Taylor-Johnson, Emma Corrin, Willem Dafoe; Estúdio: Maiden Voyage Pictures, Studio 8, Birch Hill Road Entertainment; Distribuição: Universal Pictures; Duração: 2h 12min.

Onde ver "Nosferatu" no streaming: