"Girassol Vermelho" (2025), de Eder Santos

“Girassol Vermelho”: devaneio distópico de Eder Santos

“Girassol Vermelho” se mostrou particularmente alinhado ao tema da 28ª Mostra de Cinema de Tiradentes, “Que cinema é esse?”. A Mostra busca questionar os caminhos do cinema brasileiro e investigar novas formas narrativas, algo que o longa de Eder Santos, codirigido por Thiago Villas Boas, também propõe ao transpor para a tela o realismo fantástico de Murilo Rubião com experimentalismo próprio. O filme apresenta uma jornada que ressoa com a inquietação estimulada pelo festival, ao explorar a linguagem cinematográfica e sua capacidade de reimaginar a realidade. No entanto, a obra perde força e se desequilibra, pois aposta em uma estetização meticulosa, mas sem o mesmo refinamento e ousadia de roteiro, resultando em um efeito paradoxal: é visualmente ambicioso, mas, em vários momentos, opta pelo confortável lugar-comum e pela redundância.

A trama acompanha Romeu, vivido por Chico Diaz, que, inicialmente, nos conduz a uma viagem marcada pelo estranho e pela sensação de deslocamento. A bordo de um trem, ele parte em busca de uma nova vida, cruzando com figuras que materializam emoções humanas, como culpa e medo, levando a lampejos de autoreflexão. Ao desembarcar em uma cidade onde “perguntar é proibido”, a atmosfera se torna claustrofóbica e hostil. Sua curiosidade o transforma em um alvo. Logo, como forasteiro dissonante apenas por querer saber mais, ele é preso e torturado. Assim, sua jornada é atravessada por um entrelace psicanalítico e político — o homem tenta descobrir a si mesmo, mas é interditado pelo sistema opressor, que não tolera questionamentos.

O realismo fantástico emerge não apenas no conceito da adaptação, mas na construção do universo fílmico. A cidade onde Romeu se perde é um espaço sem tempo definido, onde o onírico e o concreto se misturam, e as interações de Romeu com outros personagens oscilam entre o banal e o absurdo. A fotografia de Stefan Ciupek (que já trabalhou em produções como “Babenco: Alguém Tem que Ouvir o Coração e Dizer Parou”, “Arca Russa”, “Anticristo” e “Quem Quer Ser um Milionário?”) sustenta essa ambiguidade com um trabalho que privilegia luzes recortadas e sombras abruptas. As névoas constantes evidenciam a deliberada artificialidade; filmado integralmente em estúdio, o longa transforma a claustrofobia em linguagem. O espaço é industrial, rígido, mecânico, obscuro. 



Em uma das sequências mais interessantes, Romeu, enclausurado dentro de uma caixa cristalina e submetido a jatos de água, parece se dissolver diante da câmera, em uma metáfora para a anulação da identidade. Outra cena que se destaca, especialmente pelo impacto sensorial, é a da lâmina sobre seu rosto, que provoca desconforto sem recorrer ao óbvio, valendo-se da sugestão para comunicar a violência. O filme, como um todo, traz uma essência artesanal, utilizando-se de materiais simples e cotidianos, que o enriquece como obra e reflete o trabalho plástico e multimídia do diretor, um dos pioneiros da videoarte no Brasil.

A influência kafkiana é perceptível nas engrenagens burocráticas e repressivas que devoram o protagonista, enquanto a sensação de sonho febril remete a David Lynch. No centro desse labirinto, Chico Diaz conduz o filme com uma performance que equilibra dúvida e desespero, sustentando a imersão do espectador e da espectadora nesse mundo desconexo, mas que ecoa em ditaduras e na ascensão da extrema-direita — uma leitura alegórica evidente. As personagens ao redor de Romeu, no entanto, não se beneficiam da mesma complexidade. Como arquétipos, representam apenas conceitos. A figura do ditador interpretado por Daniel de Oliveira, por exemplo, assume uma função expositiva e repetitiva, tornando explícitas leituras que seriam mais provocativas sem tanto excesso e reiteração. A personagem de Luiza Lemmertz, enquadrada na tradição da femme fatale, também carece de desenvolvimento, sendo definida pela função clássica de levar o protagonista à ruína, sem nenhuma nuance própria e camada adicional. Os demais, como as testemunhas aleatórias de um julgamento e aqueles que servem ao sistema, nem chegam a ser dignos de nota, pois apenas reforçam arbitrariedade. 

A composição visual e o comentário político conferem a “Girassol Vermelho” uma presença marcante, mas a sensação que fica é a de que essa viagem poderia ter sido mais instigante e enigmática. A sessão no Cine Tenda da Mostra de Tiradentes, contudo, já se tornou uma das mais inusitadas: durante a projeção, um cão atravessou calmamente a frente da tela, percorreu o espaço de um lado ao outro até simplesmente voltar de onde veio e ir embora. Um instante de puro acaso, com ares surrealistas e, de certo modo, conectado ao espírito de absurdo da obra em exibição.

28ª Mostra de Tiradentes – Sessão de “Girassol Vermelho” – Foto Léo Lara/Universo Produção
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