A edição 2025 da Berlinale acontece numa cidade tomada pelo gelo, com temperaturas de até 10 graus negativos. Críticos de cinema postam em suas contas no Instagram sobre a “poesia” e a “paz” que a neve traz. Podem entender da sétima arte, mas mostram não entender de como funciona (ou não) essa cidade.
A neve dificulta o acesso de um cinema para o outro. A caminho de painéis e filmes, vejo pessoas escorregando na neve, que chegou até a uma camada grossa que não existia por aqui há mais de 10 anos! Na noite de abertura, corajosos e resilientes caçadores de autógrafos se espremiam ao longo do tapete vermelho, enquanto os flocos de neve se mostravam implacáveis.
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A tempestade de neve tinha (claro!) que chegar justamente no dia de abertura da Berlinale. Durante a monótona cerimônia de gala, repleta de políticos trocando figurinhas, dando gargalhadas e o tempo todo andando para lá e para cá, com o intuito de verem e serem vistos em tão prestigiosa ocasião, o tempo não passava — e o lanchinho colocado em cada assento, justamente pela longa duração, tinha um Pretzel que era mais duro do que uma pedra, junto a uma garrafa com suco. Pois é…
Um encontro raro
Pelo discurso da homenageada Tilda Swinton, a noite não foi totalmente em vão. Mas ela teve uma surpresa inesperada. Sentada no lounge, depois de ter abandonado o filme de abertura, “The Light”, com seus sentidos 100 plots, encontrei a mais famosa sobrevivente do Holocausto, Margot Friedländer. Com seus 103 anos, ela continua sendo uma voz importantíssima contra a volta do fascismo.
Ao vê-la sentada sozinha e sem câmeras por perto, enquanto seu neto falava ao telefone, eu cheguei perto e, com todo o cuidado e sem me aproximar de forma exagerada, disse: “É muito relevante o testemunho que a senhora continua dando e suas palavras corajosas também”. Ela, com a sabedoria de quem é centenária, disse: “Enquanto eu posso, eu faço!”
Ao pedir para tirar uma foto dela e com ela, Margot Friedländer pediu que eu esperasse ela acabar de mastigar o pretzel. Enquanto isso, seu neto acabara de telefonar e se ofereceu para fazer a selfie. Mas, neste artigo, o que importa é ela, a voz de importância máxima. Máxima também foi a minha emoção: em encontrá-la e poder lhe dirigir a palavra sem lutar com câmeras e multidões.
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A neve se amontoou tanto que, para voltar para casa, que fica a seis blocos de distância do principal cinema da Berlinale, eu tive que empurrar Matilda, a minha bicicleta, durante o trajeto inteiro pela madrugada, já bem adiantada. Mesmo usando luvas, meus dedos negavam auxílio na procura da chave. Um filme de David Cronenberg é café pequeno perto da dramaturgia da abertura da noite de gala da Berlinale 2025 com uma Berlim sucumbida pelo gelo, uma cidade com zero tradição de neve.
Zero política
A mestre de cerimônias optou por uma postura oficial (que nada combina com o festival), levando a temperatura do cinema do Berlinale Palast ainda mais para o clima gélido do que se delineava lá fora.
A Berlinale, até mesmo pela sua fundação nos anos 1950, é o festival mais político do mundo. Ironicamente, na noite de abertura da edição 2025, a política ficou de fora. Nem mesmo a tão repudiada Ministra da Cultura, Claudia Roth, em sua última aparição no festival, já que a Alemanha tem eleições gerais no próximo domingo (23), nem o prefeito da cidade de Berlim, Kai Wegener, que acaba de fazer cortes radicais no setor cultural, tiveram uma vaia que merecia esse nome. Foi uma vaia sem intensidade, sendo possível ouvir quem estava sentado na fileira dos políticos. Eu, por acaso, estava sentada quatro fileiras atrás. Como jornalista, nunca me posiciono publicamente, mas que uma única e derradeira possibilidade foi perdida, isso foi.
Foi a atriz escocesa (Ma)Tilda Swinton que salvou a cerimônia de abertura, concedendo a nota política indispensável na Berlinale e pelo Zeitgeist que vivemos: “Opressores são opressores, não importa a proveniência”, disse no palco, arrancando muitos aplausos da maioria de alemães na sala de cinema.
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Duração XXL
Depois de condecorar a atriz com o Ehrenbär (Urso de Honra), a diretora da Berlinale, Tricia Tuttle, voltou ao palco para anunciar o filme de abertura, “The Light” ou “Das Licht” (A Luz), do diretor Tom Tykwer (“Corra, Lola, Corra”, “Perfume – A História de um Assassino”). Mais uma vez, o festival deixou de brilhar pela péssima escolha. Choveram críticas da imprensa especializada. Um jornalista alemão foi ácido: “Parece que Tykwer esqueceu de mostrar o roteiro para um amigo”.
Na coletiva de imprensa com Tuttle e seu braço direito, Michael Stütz (há anos curador-chefe da Mostra Panorama e agora acumulando a função de codiretor de programação), uma das minhas dúvidas era exatamente sobre o motivo que levou à escolha desse filme para abrir a Berlinale. É preciso saber que Tykwer já foi presidente do júri internacional e já exibiu trabalhos no festival em outras duas vezes: “Paraíso” (2002) e “Trama Internacional” (2009). O hype em torno do diretor, que é “prata da casa” por ser alemão, é algo que pairava sobre o Berlinale Palast.
Com uma pseudo-espiritualidade e muitos estereótipos, “Das Licht” foi um erro colossal para a abertura, mesmo que não esteja concorrendo aos Ursos de Ouro e Prata. Porque a Alemanha está no limbo político entre democracia e a volta do fascismo, o cinema precisa reagir.
Outro ponto muito negativo na escolha do filme para a abertura do festival é o já über-estimado ator Lars Eidinger, o astro do momento no cinema alemão. Não há filme feito por diretor famoso no qual Eidinger não seja protagonista. Parece que o estrelato se tornou um ingrediente de qualidade, mas essa linha de raciocínio se mostra um grande equívoco. O personagem de Eidinger em “Das Licht”, com seu cabelo selvagem e rústico, é um ativista climático que vive um relacionamento vegetativo com sua esposa, também ativista na África, mas, quando chega em casa, a primeira coisa que faz é tirar a roupa, pegar uma cerveja na geladeira e conversar com mulheres nuas na internet.

A distopia exibida no filme de Tykwer espelha um aspecto da sociedade alemã: a pressão de ser um indivíduo político, ativo como legitimação da própria existência. Estar de plantão o tempo todo. Realidade e expectativa se mostram dicotômicas. Até aí tudo bem, mas as inúmeras subtramas fazem do filme um mosaico impossível e a fatura não fecha. A duração de “Das Licht”, com mais de duas horas e meia, é o maior sacrifício.
Novos Caminhos
Tricia Tuttle traz novos rumos para o terceiro maior festival do mundo, mas ainda precisa de tempo para mapear o terreno árido que foi deixado pelo ex-diretor, Carlo Chatriani. Há muito a fazer nos ajustes programáticos. É preciso preparar a Berlinale para o futuro, num mercado e indústria dominados por streamings, que não te obrigam a sair de casa sob temperaturas sibéricas para ter “aquela sensação de cinema”.
Tuttle precisa de tempo para ajustar o festival, mas as grandes telas de TV e a inflacionária oferta de formatos para todos os gostos é um desafio que o cinema em geral, mas especialmente a Berlinale, precisa enfrentar. Sem mais delongas, sem medidas de caráter banho-maria. O exercício de meticulosa curadoria é essencial nesse complexo assunto.
A Berlinale vem mostrando muitos buracos, muitas fraquezas. Vê-se também, em outros festivais, a falta de meticulosidade e cuidado no exercício da curadoria, no zelo de selecionar o que deve ser visto, em que momento e por que. Nesse quesito, a dupla Tricia Tuttle e Michael Stütz ainda precisa se alinhar e entregar.
Dieter Kosslick, lendário diretor da Berlinale durante muitos anos, disse certa vez: “Os filmes nos mostram o que acontece no mundo”. E a Berlinale 2025 está devendo, muito, nesse aspecto.
Brasil no topo
Enquanto o Brasil concorre a três estatuetas no Oscar com “Ainda Estou Aqui”, do diretor Walter Salles, um velho conhecido da Berlinale (ele ganhou o Urso de Ouro com “Central do Brasil”), o cinema do país volta a brilhar em Berlim, esbanjando diversidade na abordagem de temas, item que é o DNA do nosso cinema autoral, em coerência com a essência do nosso país, desconstruindo estereótipos. Depois de seis anos de opressão e estrangulamento das políticas pública no setor cultural, finalmente voltamos mostrar os vários Brasis na Berlinale.
Na mostra competitiva principal está o longa “O Último Azul”, de Gabriel Mascaro, estrelado por Denise Weinberg e Rodrigo Santoro. Novo filme de Anna Muylaert, “A Melhor Mãe do Mundo”, com Shirley Cruz e Seu Jorge, integra a mostra Berlinale Special. Já o documentário “Hora do Recreio”, de Lucia Murat, foi selecionado para a Generation, mostra voltada a filmes infantojuvenis e que também exibirá “De Menor”, de Caru Alvez de Souza, e “A Natureza das Coisas Invisíveis”, de Rafaela Camelo. Outro destaque do cinema brasileiro no festival alemão é “Iracema, uma Transa Amazônica” (1975), de Jorge Bodanzky e Orlando Senna, que terá sessão especial com cópia restaurada.
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Nascida no Rio de Janeiro e radicada na capital alemã, acompanha o Festival Internacional de Cinema de Berlim desde 1989, ainda como cinéfila incondicional. Em 1998, a cobertura se tornou profissional, para diversos meios de comunicação no Brasil e na Alemanha, e durante quatro anos foi expert da Berlinale no programa “Dschungelfieber”, da Rádio Eins de Berlim.