Filmes que têm como cenário a Floresta Amazônica, pulmão do mundo, horizonte infinito, geram expectativas de todos os tipos e nos confrontam com nossos estereótipos.
Aquela tarde gélida de domingo (16/02) marcaria o ápice da presença do filme brasileiro “O Último Azul” na 75ª Berlinale. Desde 2020, o cinema brasileiro brilhava pela ausência na Mostra Competitiva, que premia com os Ursos de Ouro (Melhor Filme) e Prata (Melhor Ator/Atriz).
A dinâmica escolhida pelo diretor Gabriel Mascaro (“Boi Neon”, “Divino Amor”) foi certeira nos 10 primeiro minutos.
O roteiro alinhavado e a montagem ágil fecham a fatura. Vemos a protagonista, Tereza, de 77 anos, sendo arrancada de seu dia-a-dia numa empreitada distópica, num país acorrentado por uma política repressiva sob a Ditadura Militar, onde a ordem é o se subordinar ao coletivo. Interesses particulares são tabu. Idosos, a partir de certa idade, são arrancados de suas famílias, sendo providos do seu convívio social com amigos, vizinhos e colegas de trabalho, mas também de suas raízes, vontades e os sonhos que lhes possivelmente restaram, deslegitimizados pela opressão.
Na coletiva de imprensa, depois da exibição do filme para a imprensa especializada, o diretor Gabriel Mascaro, declarou: “Sobre o Amazonas, as pessoas tem uma visão muito idealizada. Eu queria fazer um filme que brincasse com esse estereótipo (…), uma Amazônia escrita nas contradições do contemporâneo.”
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Boxear o etarismo
Tereza, brilhantemente vivida por Denise Weinberg, é uma mulher que, apesar da idade avançada, continua acalentando sonhos e se mantendo curiosa.
Na coletiva de imprensa, via-a se a equipe inteira entrosada e muito pé no chão, mas com toda a ciência de que estava vivendo um momento histórico. Na estreia do filme na Mostra Competitiva e, por nenhuma coincidência, com a volta das políticas públicas de fomento às artes pelo atual governo federal, o Brasil se encontra no topo do mundo, no quesito Sétima Arte. As três indicações ao Oscar conquistadas pelo filme de Walter Salles, “Ainda Estou Aqui”, estão movendo mundos e fundos no mercado e indústria internacionais. O filme de Gabriel Mascaro, cotado pela imprensa e críticos de cinema para obter pelo menos um prêmio na competição da Berlinale, encaixa perfeitamente no Zeitgeist do cinema brasileiro, já tão altamente premiado em Berlim, com filmes como “A Hora da Estrela”, “Central do Brasil” e “Tropa de Elite”.
Sempre um colírio, mas no lugar errado
Rodrigo Santoro é o ator brasileiro mais conhecido em Hollywood. O “nosso George Clooney” transita com a mesma naturalidade nos tapetes vermelhos de Los Angeles, Nova York e Berlim como o faz no Festival do Rio e na Mostra de Cinema em São Paulo. Instigante, para dizer o mínimo, é a aura de quem não tem que provar mais nada pra ninguém. No coquetel de abertura e, por coincidência na minha mesa, Rodrigo ligava para um amigo dizendo: “Vem aqui comer a boia!”
Na recepção na Embaixada Brasileira para participantes da Berlinale, ele conversava com colegas, dava entrevista, bebia uma taça de vinho, como fazem convidados sem o aval de Hollywood. Na festa do filme, num clube bem underground no bairro de Kreuzberg, Rodrigo conversava no balcão do bar com colegas e falava de negócios. Ele se mostra sempre focado, sempre on duty e, mesmo assim, dono de uma naturalidade e leveza instigantes ao lidar com o show business.
Ao assinar sua foto na galeria do Berlinale Palast, ele arrematou com a caneta: “BRASIL!”, assim mesmo, com letras maisúsculas. Em conversa rápida com o cinematório, ele dizia, com a voz regada de orgulho, como é bacana o brasileiro estar orgulhoso de novo.
Tudo tem um “porém”
Dono do barco que leva Tereza em sua primeira parte da viagem, o emburrado e excêntrico Cadu, personagem de Rodrigo Santoro, é um peixe fora d’água e não acrescenta o suficiente à dramaturgia do filme. Só com o encontro das duas mulheres no barco “Caridade” é que o filme aflora como uma verdadeira obra-prima da filmografia autoral brasileira. “O Último Azul” é um filme de mulheres fortes e de tal maturidade, que a auto-ironia e a supresa com os próprios voos e saltos é uma ferramenta que instiga esperança. O percalço e a derrota como possibilidade de um recomeço.
As duas saem ao longo do rio (apesar de ateias) vendendo Bíblia digital pelo valor de R$ 250, com uma bateria que elas garantem que “não acaba nunca”.
Denise Weinberg e a atriz cubana Miriam Socarrás exalam química intrínseca, visceral, nada ensaida. A partir da chegada daquela que acaba se tornando o complemento de Tereza, o filme alcança seu ápice dramatúrgico.
As duas mulheres esfregam na cara de um mundo dominado pelo machismo, como mulheres na terceira idade podem, sim, esbanjar esperteza, leveza, amor pelo próprio corpo e sensualidade de forma mais genuína, alcançando a melhor sinergia num jogo hora complementar, hora dicotômico com o meio ambiente em que se encontram: mutáveis e imprevisíveis como a chuva e o vento forte.
Urbanidade como fotografia
O amor (ou seria obsessão?) de Gabriel Mascaro pelos provérbios escritos nos muros do cenário urbano, pela ironia e pela história do Brasil sob a Ditadura Militar, e como a irreverência pode ser um bem-vindo xarope contra a opressão, é um deleite para quem se atenta aos detalhes. A fotografia, assinada por Guillermo Garza, sublinha a beleza máxima que é estar sob o céu da Floresta Amazônica. Tive vários déjà-vu com as imagens do pôr-do-sol, mas também com a letargia dos barcos, além do rádio como único meio de comunicação para passar notícias.
Autenticidade tem nome: Denise Weinberg
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Ter características incorporadas em sua atuação é tão perfeito como goiabada com queijo, a mais popular sobremesa da culinária brasileira. E quem acha que cinema e culinária são água e vinho, se engana redondamente. Nesse filme, a fome (apesar de estar em toda a parte, devido às jornadas longas no meio do mato) não exerce nenhum peso na dramaturgia nem na dinâmica do elenco. Aqui, a fome é transcendente aos aspectos mundanos do dia-a-dia. Quando Tereza precisa roubar roupas do varal de um desconhecido para ter o que usar, o filme segue nesta mesma linha coerente. Mascaro optou pela interiorização das personagens e deixou os aspectos mundanos fora de foco.
Os atrasos determinados pela Mãe Natureza transformam o sentido de tempo da protagonista, que tem pressa em realizar seus sonhos antes de ter que ir para a Colônia de Férias para idosos.
Aos poucos, também para o espectador, há uma metamorfose na percepção do tempo, o que me fez lembrar da minha viagem de sete dias e seis noites pela Floresta Amazônica em 2022, tendo que abdicar de internet e telefone. A estação de rádio de Manaus só pegava algumas horas à noite e era nosso único contato com o mundo externo.
Na coletiva de imprensa, Denise expressou a essência da alma da Tereza e demonstrou por que era a atriz perfeita para esse papel, na desconstrução do etarismo, especialmente para mulheres, sempre submetidas a rigorosos critérios sociais. Na velhice, são ainda mais implacáveis.
“Eu sempre procurei ter uma energia muito forte. Eu não vou ficar sentada na cadeira de balanco fazendo crochê. Não existe essa possiblidade. Existe sim, mas é uma questao de opção”, declarou a atriz. “A Tereza, minha personagem, tem uma característica que é muito forte para o não envelhecimento, que é a curiosidade. Dizem os cientistas que você comeca a envelhecer quando você perde a curiosidade pelas coisas. Ela é curiosa, ela quer voar, ela quer fazer coisas ainda. Quando você quer fazer coisas, você ainda não envelheceu. As células ainda estão pulsando. Eu não me preocupei em fazer uma velha caquética, ao contrário. (…) É importante mostrar que [a idade] não é uma paralisia, é um envelhecimento que é muito bom. Já disse Nelson Rodrigues: é bom envelhecer bem, com energia, com curiosidade, com sensualidade. (…) A minha preocupação foi fazer (a Tereza) ser ativa, para a gente ver que velho nao é paralisado.”
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O financiamento mostra, mais uma vez, que fazer um filme é um ato coletivo. A produção foi realizado por meio de investimentos da Ancine, FSA, BRDE, SUAT, Funcultura, Banco do Brasil, EFICINE, Actinver, Focine/Foprocine, Fondo de Fomento Audiovisual, Ibermedia, Hubert Bals, Netherlands Film Fund e Fundo de Coprodução Brasil-México.
“O Último Azul” deve chegar ainda ao longo de 2025 aos cinemas do Brasil, em circuito nacional.
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Nascida no Rio de Janeiro e radicada na capital alemã, acompanha o Festival Internacional de Cinema de Berlim desde 1989, ainda como cinéfila incondicional. Em 1998, a cobertura se tornou profissional, para diversos meios de comunicação no Brasil e na Alemanha, e durante quatro anos foi expert da Berlinale no programa “Dschungelfieber”, da Rádio Eins de Berlim.