Uma mulher, jovem e bonita, está fazendo compras em um supermercado. De repente, ela vê um homem, também atraente, pegando algumas laranjas. Os olhares dos dois se cruzam. Mas isso apenas serve para que o rapaz acabe derrubando desajeitadamente todas as frutas da banca. Ele olha sem graça para ela, que sorri, mais atraída ainda pelo jovem desastrado. Ambos falam seus nomes um para o outro, e este é o início da história de amor entre os dois. Um detalhe, porém, será revelado ao/à espectador(a) mais tarde: todo este início idílico de comédia romântica não passa de uma mentira, uma invenção. É, portanto, a ficção dentro da ficção.
O começo de “Acompanhante Perfeita” (péssimo título brasileiro para “Companion”), do estreante em longas-metragens Drew Hancock, já deixa claro um dos principais pontos desta mistura de horror, ficção científica, thriller e comédia com óbvios comentários sociais. A trama acompanha o casal da primeira cena, Iris (Sophie Thatcher) e Josh (Jack Quaid), em uma temporada de férias na casa de uma amiga dele. Iris se sente insegura e incompleta, desconfiando que uma das amigas do namorado, Kat (Megan Suri), não gosta dela. Isso seria um problema, já que o companheiro de Kat, Sergey (Rupert Friend), é o dono da casa no lago. Para lá também vai o terceiro casal do grupo, Eli (Harvey Guillén) e Patrick (Lukas Gage). Após uma primeira noite de diversão e amabilidade, o desconforto de Iris se prova premonitório quando Sergey tenta estuprá-la. Ela o atinge fatalmente com uma faca. É então que o filme toma outro rumo, e em uma virada propositadamente previsível, descobrimos que a protagonista na verdade é um robô ultratecnológico que havia sido programado para reagir ao avanço do anfitrião.
“Acompanhante Perfeita” não faz questão de esconder a real natureza de sua personagem principal. O próprio cartaz do filme mostra Iris com olhos esbranquiçados e artificiais, e logo na primeira noite na casa do lago, após o sexo com o namorado, Iris começa a falar algo e Josh ordena rispidamente que ela vá dormir. Talvez por isso a revelação de que ela é um robô venha tão cedo. O roteiro, escrito também por Drew Hancock, tampouco preserva a resolução da trama. Na primeira cena, Iris narra como os dois dias mais importantes de sua vida foram aqueles em que conheceu e matou Josh. A vitória dela no fim, portanto, não é nenhum segredo. Tirados esses elementos do caminho, sobra tempo para que o filme se preocupe com aquilo que realmente parece ser seu interesse: tematizar a obsessão dos homens por controlar as mulheres e a forma como o cinema pode reforçar ou desconstruir esse olhar masculino.
Não que o filme tenha a densidade discursiva e a opulência visual de, por exemplo, “Um Corpo que Cai”, uma das mais importantes obras a tratar dessas questões. Este nem parece ser o objetivo, embora a obra-prima de Hitchcock seja certamente uma inspiração. O que o roteiro e a direção de Drew Hancock fazem vai no caminho mais direto de “Esposas em Conflito” (1975), um dos primeiros filmes de ficção científica a tratar abertamente de questões específicas das mulheres, colocando-as no protagonismo. “Acompanhante Perfeita”, todavia, se destaca como um longa muito contemporâneo na forma empática a partir da qual trata a personagem feminina, além de se sair muito bem enquanto entretenimento. Trata-se, sobretudo, de um filme extremamente divertido.
O aspecto mais surpreendente aqui, contudo, é Sophie Thatcher, atriz estadunidense que nos últimos anos vem se tornando conhecida pelas performances em filmes de terror. Em “Acompanhante Perfeita”, seu rosto magnético carrega o filme, e a atriz consegue ao mesmo tempo dar à personagem a movimentação e a fala levemente artificiais que a tornam crível enquanto máquina e incorporar força e delicadeza no rosto milimetricamente perfeito, exibindo um carisma inequivocamente humano. É uma composição muito acertada, uma vez que em nenhum momento a aparência idealizada da personagem a torna inacessível ou fria; pelo contrário, o sorriso e os olhos expressivos da atriz quebram a sutil e calculada rigidez de seu corpo, de modo que o encanto de Iris só torna mais patético o fato de Josh enxergá-la apenas como um corpo bonito. Há, porém, e paradoxalmente, algo subterrâneo e estranho nela. Quando Iris sorri, ainda na primeira cena, os músculos de sua boca e pescoço parecem muito mais tensionados do que o normal, remetendo imediatamente a Georgina, de “Corra!” (2017). Josh, por outro lado, parece perfeitamente satisfeito, o que já indica um desequilíbrio naquela relação.
Jack Quaid, a propósito, tem seu rosto inofensivo aproveitado para a criação de um tipo particular de personagem, muito comum: ele é, como se descreve, um “bom moço”, que quer apenas uma namorada perfeita à disposição para fazer todas as suas vontades e mascarar sua própria mediocridade. No fim, durante a desconcertante cena do jantar, Josh se ressente de não ter a vida que supostamente mereceria ter, e o filme exemplifica de modo extremo como as mulheres são penalizadas e usadas como bode expiatório até mesmo para o fracasso dos homens. Iris é, na realidade, apenas um brinquedo para ele, um corpo que lhe supre sexo na hora e no lugar desejado. O filme leva a objetificação feminina ao último patamar, apenas para depois subvertê-la, já que Iris toma as rédeas da situação e passa a comandar o próprio corpo e a própria mente. “Ninguém nasce mulher: torna-se mulher”, diria Simone de Beauvoir – com todas as violências e as possíveis resistências que essa complexa construção compreende.
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O roteiro e a direção criam maneiras formidáveis de concretizar esse arco da personagem, dentre as quais o destaque é o momento em que a protagonista foge da casa em direção à floresta, com o celular do namorado. Ela acessa o aplicativo que a controla e aumenta seu nível de inteligência, logo depois imaginando formas de voltar para casa e os prós e contras de cada uma, em uma cena que parodia e critica brilhantemente a recorrência de personagens femininas estúpidas em filmes de terror. É um expediente similar ao do cultuado “O Segredo da Cabana” (2011), que apresenta o clichê apenas para revertê-lo depois, explicitando o código.
Iris decide, por fim, que a melhor alternativa é voltar para a casa, pegar o carro inteligente de Josh e retornar à cidade. Quando a personagem descobre que sua inteligência está no patamar de 40% por ação do namorado e, a partir daí, eleva o percentual e passa a tomar decisões mais elaboradas e calculadas, o público é forçado a rememorar quantas vezes já viu mulheres tolas na ficção, e a concluir que aquelas personagens, assim como Iris, eram construídas de tal maneira, não um reflexo da realidade. Ao tornar o clichê explícito na tela, Drew Hancock acaba demonstrando o quão primário e ridículo ele é.
Muita coisa em “Acompanhante Perfeita”, aliás, não é o que parece. O primeiro encontro entre Eli e Patrick, por exemplo, não passa de uma memória falsa, implantada artificialmente no sistema de Patrick, tal qual Josh havia feito com Iris. O filme é esperto ao nos apresentar ambas as cenas como parte da “realidade”, mostrando apenas depois que aquelas memórias eram tão ficcionais quanto a própria obra que estamos assistindo. Sergey, o namorado mais velho de Kat, também é descrito no início pelos personagens como um mafioso, já que ele é russo – e, na mentalidade do estadunidense médio, qualquer pessoa rica vinda da Rússia não pode ter ganhado seu dinheiro de forma íntegra. O estereótipo xenofóbico, todavia, cai por terra no momento em que Kat revela a Josh que Sergey sempre foi um comerciante de grama. A própria Kat, no início, parece se sentir diminuída por Iris, mas descobrimos que ela e Josh arquitetaram um plano que envolvia o assasinato do namorado pela robô e a divisão da fortuna dele entre os amigos.
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Visualmente, o filme preza por uma direção de fotografia limpa, mais dessaturada, que cria uma ambiência levemente futurística e tecnológica para as cenas. Existem, porém, bons usos de contraste entre os diversos elementos da mise-en-scène, através, por exemplo, da pele excessivamente branca de Sophie Thatcher (maquiada tal qual uma boneca, no limite do vale da estranheza) – que faz com que seu rosto se destaque tanto em relação ao próprio cabelo castanho-escuro da personagem quanto em comparação com elementos do plano de fundo (as bancas de frutas no mercado ou a floresta). O figurino multifuncional também desempenha um papel importante, na medida em que as roupas claras, com corte reto e caimento preciso de Iris (como a blusa azul-clara da primeira cena ou a camisa de botão rosa-clara do cartaz) ajudam a compor sua personagem robô no início, e, ao mesmo tempo, são cruciais para a mobilidade da protagonista quando ela precisa fugir e também para comunicar o crescente nível de violência do filme através do sangue nos tecidos.
Iris (seu nome aqui não parece em vão) termina o filme conseguindo romper com o olhar masculino que tem conformado sua existência, não sem levar consigo as fortes marcas da violência (inclusive física) sofrida. Como Laura Mulvey nos ensina, “A mulher […] existe na cultura patriarcal como o significante do outro masculino, presa por uma ordem simbólica na qual o homem pode exprimir suas fantasias e obsessões através do comando lingüístico, impondo-as sobre a imagem silenciosa da mulher, ainda presa a seu lugar como portadora de significado e não produtora de significado”. A personagem de Sophie Thatcher sai desta condição ao tomar consciência da ficção construída sobre si e adquirir, literalmente, as ferramentas para direcioná-la.
Por isso, “Acompanhante Perfeita” se encerra como uma obra notável, tanto por sua qualidade estética quanto pelos subtextos colocados de forma explícita. O filme consegue combinar momentos de tensão perturbadora, como a já citada cena do jantar, com outros de humor sombrio – quando, por exemplo, Iris muda sua configuração linguística para o alemão na tentativa de escapar da abordagem policial. E o longa-metragem faz tudo isso sem nunca perder a contundência de seu discurso. O domínio que Drew Hancock tem em relação ao filme e Sophie Thatcher demonstra ter sobre sua personagem espelha a autonomia que Iris conquista sobre a sua própria vida. Para os três, a ficção nunca esteve tão sob controle. ■
ACOMPANHANTE PERFEITA (Companion, 2025, EUA). Direção: Drew Hancock; Roteiro: Drew Hancock; Produção: Zach Cregger, Roy Lee, Raphael Margules, J.D. Lifshitz; Fotografia: Eli Born; Montagem: Brett W. Bachman, Josh Ethier; Música: Hrishikesh Hirway; Com: Sophie Thatcher, Jack Quaid, Lukas Gage, Megan Suri, Harvey Guillén, Rupert Friend; Estúdio: New Line Cinema, BoulderLight Pictures, Vertigo Entertainment, Subconscious, Domain Entertainment; Distribuição: Warner Bros. Pictures; Duração: 1h 37min.
Onde ver "Acompanhante Perfeita" no streaming:
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Jornalista formado pela UFMG, mestrando em Artes pela mesma instituição (com pesquisa sobre a obra do cineasta indiano Satyajit Ray) e crítico de cinema no Cinematório e no Projeto Lumi. Já cobriu o Festival do Rio e a Mostra de Tiradentes. Foi, durante um ano e meio, assessor de imprensa da Fundação Clóvis Salgado (BH). É votante no Latin American Critics’ Awards for European Films, da European Film Promotion (EFP). Tem experiência comentando filmes, programando exibições cinematográficas e na pesquisa de imagens para televisão e documentário.