Que o casamento pode ser visto ou tratado como um negócio não é novidade. Por mais que essa frase possa soar e até ser um pouco machista e conservadora, quando há a subversão desse jogo de interesses no cinema é sempre muito divertido de se assistir. Me explico: no longa “Bonequinha de Luxo”, acompanhamos a carismática Holly Golightly (Audrey Hepburn) em busca de um belo homem rico para se casar e resolver seus problemas. O clássico dirigido por Blake Edwards data do ano de 1961, ou seja, são mais de seis décadas de uma história que marcou uma geração e nos fez torcer para uma mulher que, por muitas vezes, é vista como interesseira e trambiqueira, para não dizer ofensas piores e que, infelizmente, são naturalizadas em nossa sociedade.
Avançamos para 2024, ano de lançamento de “Anora”. O longa dirigido, escrito, produzido e montado por Sean Baker (“Projeto Flórida”) traz em seu título a personagem da talentosa Mikey Madison (“Era uma vez em… Hollywood”), que poderia ser vista como uma bonequinha de luxo moderna, porém sem tanta inocência.
Isso porque Anora é uma jovem, neta de imigrantes e que trabalha como stripper em um clube noturno no Brooklyn, em Nova York. Com uma rotina repleta de homens à procura de “diversão” e uma busca por mais dinheiro, a protagonista não possui tantas alternativas quando o assunto é perspectiva. Tudo muda quando ela conhece Ivan (Mark Eydelshteyn), um jovem herdeiro russo que queria uma dançarina que soubesse falar seu idioma. Após decidir se encontrar com ele fora da boate, Ani (como ela prefere se apresentar) inicia um relacionamento com Ivan e se vê em meio à realização de sonhos que só o dinheiro seria capaz de lhe proporcionar. Após uma viagem a Las Vegas, os dois se casam e vivem os melhores dias de suas vidas. Mas o sonho se torna um pesadelo quando os pais do noivo descobrem tudo.
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anora crítica
Mesmo sem a “inocência” de gerações anteriores à sua, Anora traz consigo uma certa beleza e esperança de dias melhores e de um futuro “premiado”. Uma cena que chama atenção e ilustra isso é quando Ivan diz que Ani age como alguém de 25 anos, sendo que ela possui 23. A necessidade de agir como uma pessoa mais madura diz muito da vida que a personagem leva e de suas obrigações para sobreviver em uma sociedade consumista e capitalista — algo que o filme retoma mais à frente em meio às diversas camadas que Mikey Maddison constrói na personagem.
Os detalhes que Sean Baker traz logo na primeira parte da história reforçam o quanto Anora se divide e cria uma persona para viver sua vida noturna. Este ato nada mais é que uma tentativa de chegar ao seu objetivo de encontrar o tão sonhado marido rico ou, melhor dizendo, de realizar o desejo de um conto de fadas. Afinal, Ani é tudo que Anora deseja ser: apaixonada, sensual, encantada e afetuosa. Em alguns momentos, é quase possível acreditar que ela realmente está apaixonada por Ivan. Mas, vivendo uma vida dos sonhos, será que alguém não se apaixonaria?
O filme se divide em três atos bem delimitados: o da vida pregressa de Anora; o de apaixonamento pela possibilidade de um futuro melhor com Ivan; e o desfecho do casamento. O último acaba sendo o mais demorado dos três, transformando o longa em uma eterna comédia maluca, o que deixa a situação ao mesmo tempo exagerada, divertida e desesperadora.
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Por mais que o filme funcione quase como uma tragédia anunciada, ele se perde na narrativa do exagero. Chega um momento em que o caos cansa e, assim como Anora, aceitamos o final do sonho e só queremos que tudo acabe com o mínimo de dignidade para os envolvidos.
A interação entre a protagonista e um dos capangas, Igor (Yura Borisov), é um dos pontos altos do filme. A atuação muito focada nos olhares e expressões dão profundidade aos personagens, criando um contraste com os excessos do roteiro. A dinâmica criada entre os dois revela pessoas feridas e cansadas da vida que estão levando, mas que buscam seguir em frente. São pessoas muito reais, que criam uma conexão real e sem as firulas que costumamos ver em comédias românticas.
Mesmo com camadas interessantes e pontos de reflexão, “Anora” se perde em suas milhares de voltas e mudanças de tom, e por simplesmente não aproveitar mais a capacidade dramática de Mikey Madison. O maior acerto de Sean Baker é apostar em uma personagem real e em uma abordagem atenta à realidade a que o capitalismo expõe as pessoas dentro e fora da tela. O apagamento dos traumas individuais e das tristezas é algo que a personagem faz e que muitas vezes nós também fazemos na nossa rotina. A busca dela pela ascensão financeira se revela uma imposição social cruel e que nos faz sair, de certa forma, um pouco machucados também. ■
ANORA (2024, EUA). Direção: Sean Baker; Roteiro: Sean Baker; Produção: Alex Coco, Samantha Quan, Sean Baker; Fotografia: Drew Daniels; Montagem: Sean Baker; Música: Matthew Hearon-Smith; Com: Mikey Madison, Mark Eydelshteyn, Yura Borisov, Karren Karagulian, Vache Tovmasyan, Aleksei Serebryakov; Estúdio: FilmNation Entertainment, Cre Film; Distribuição: Neon, Universal Pictures; Duração: 2h 19min.
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Onde ver "Anora" no streaming:
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