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“O Brutalista”: Um épico de papel

"O Brutalista" (The Brutalist, 2024), de Brady Corbet - © Universal Pictures

© Universal Pictures

“O Brutalista” (2024), de Brady Corbet, parece estar sempre em dúvida sobre qual tipo de filme deseja ser. Já de início, vemos que o roteiro estrutura o longa-metragem em “Abertura”, “Partes” (ou Atos) 1 (“O Enigma da Cidade”, que cobre os anos de 1947 a 1952) e 2 (“O Núcleo Duro da Beleza”, 1953-1960), e “Epílogo” (“A Primeira Bienal de Arquitetura”, situado em 1980), tal qual a partitura de uma ópera. Suas 3 horas e 35 minutos de duração lembram as pretensões grandiosas de filmes como “Intolerância” (1916), “…E O Vento Levou” (1939) e “Assassinos da Lua das Flores” (2023). A trama, que segue um arquiteto judeu e imigrante húngaro atormentado no Estados Unidos do pós-Segunda Guerra Mundial, aparenta ser épica aos moldes do primoroso “Lawrence da Arábia” (1962). Tecnicamente, o filme ressuscita o VistaVision e traz de volta o intervalo (intermission) comum nas grandes produções da Era de Ouro de Hollywood. Até mesmo o estilo brutalista, com suas gigantescas estruturas de concreto exposto, e a arquitetura de uma forma geral, ambos elementos centrais do longa, apontam para um filme em grande escala.

Por outro lado, todos esses aspectos do filme são mal aproveitados ou estão a serviço de um exercício estilístico quase sempre vazio. A divisão em atos operísticos, presente nas outras obras do diretor – “A Infância de um Líder” (2015) e “Vox Lux: O Preço da Fama” (2018) –, soa genérica e totalmente dispensável, portanto mais uma reafirmação forçada da pretensão grandiosa do filme do que a tradução de marcadores estruturais genuínos. Os 215 minutos, por sua vez, tornam o filme prolixo, com diversas cenas que se arrastam muito mais do que o necessário. A premissa, a princípio pouco atraente para mim, se provou ainda menos interessante através da execução morna do diretor. O VistaVision, ideal para narrativas de grande escopo, é desperdiçado em um longa-metragem que falha ao construir quadros minimamente memoráveis. E a dimensão arquitetônica da história é muito mais falada do que mostrada, de modo que o filme, ironicamente, não revela quase nada sobre o estilo que lhe empresta o nome.

O que “O Brutalista” faz – moderadamente bem – é responder ao espírito de seu tempo, trazendo um comentário implacável sobre a falência do “sonho americano”. Tal como “Anora”, de Sean Baker – seu concorrente aos Oscars de Melhor Filme, Direção, Roteiro Original, Montagem e Ator Coadjuvante em 2025 –, o filme de Brady Corbet apresenta personagens iludidos pela promessa malfadada de sucesso nos EUA. No caso de “O Brutalista”, todavia, os protagonistas não são estadunidenses, e sim imigrantes do Leste Europeu. László Tóth (Adrien Brody) sobrevive ao campo de concentração de Buchenwald e emigra para a América, esperando construir uma nova vida para si. Ele vai morar na Filadélfia com um primo, mas logo é expulso de lá sob uma acusação falsa.

Tóth recebe então uma oferta de trabalho de Harrison Lee Van Buren (Guy Pearce), um poderoso capitalista da região, que lhe pede para construir um grande centro cultural em homenagem à sua recém-falecida mãe. O arquiteto aceita a tarefa, e logo vê sua esposa Erzsébet (Felicity Jones) e sua sobrinha Zsófia (Raffey Cassidy / Ariane Labed), ambas sobreviventes de Dachau, chegarem aos Estados Unidos por intermédio de Harrison. O empreendimento encomendando a Tóth, no entanto, vai consumindo cada vez mais sua vida, a recém-recuperada autonomia e suas relações com a família, e ambos se tornam vítimas do racismo e da xenofobia crescentes do magnata.

Nesse sentido, o plano mais simbólico e profético do filme talvez seja aquele que vemos na chegada do imigrante ao novo país: a Estátua da Liberdade, metonímia dos EUA, de ponta cabeça e ligeiramente torta. A direção nos conta através de imagens que a “América” está longe de sua concepção ideal. Mais tarde, já quase no “Epílogo” e depois de um ponto de virada na trama, Erzsébet é categórica: “Este país é podre”, conclui ela – uma frase surpreendentemente dura para um filme produzido (também) pelos Estados Unidos, em tempos de Donald Trump no segundo mandato. Veremos, ao longo da progressão da história, como tanto os imigrantes quanto os estadunidenses não-brancos – caso de Gordon (Isaach de Bankolé), um homem negro e amigo de primeira hora de Tóth nos EUA – têm a cidadania plena e a dignidade soterradas na “terra das oportunidades”. Já no início, na verdade, quando Harrison usa uma expressão racista para se referir a Gordon durante um acesso de raiva, fica clara a real natureza do personagem, um capitalista tipicamente americano frustrado com a própria mediocridade, e cujo ímpeto empreendedor vai se revelando cada vez mais como uma manifestação concreta de sua supremacia recalcada.

Em termos de cinematografia, Brady Corbet e seu diretor de fotografia Lol Crawley (com ele desde o primeiro filme) conseguem construir alguns poucos momentos notáveis para o longa. Dois deles são bastante convencionais, reminiscentes de um cinema clássico que o cineasta certamente admira. Em um, ainda na primeira parte, sombras pesadas cobrem metade do rosto do protagonista à medida que o primo o acusa de ter avançado sobre sua esposa, justificando com isso a expulsão do recém-chegado. Depois, na segunda parte, após um breve diálogo sobre Zsófia na mesa de jantar dos Van Buren, ao invés de simplesmente cortar para o contraplano, a câmera elegantemente reenquadra o casal Tóth, como que dispensando de forma polida a personagem traumatizada da sobrinha e se voltando para o drama específico de László e Erzsébet à medida que eles relatam mais de sua história aos anfitriões estadunidenses.

O que mais impressiona na cinematografia, contudo, é o que talvez poderíamos chamar de plano-assinatura de Brady Corbet, presente desde “A Infância de um Líder”, que consiste no tracking shot do personagem subindo uma escada. Temos pelo menos três usos desse recurso narrativo característico aqui, dois dos quais demonstram um virtuosismo admirável e que parece em falta no restante do filme. Em dado momento, após anos de paralisação devido a um grave acidente com um trem carregado de materiais para a construção, as obras para o centro comunitário são reiniciadas. O advogado de Harrison vai a Nova York, onde Tóth está trabalhando em um novo emprego, chamar o arquiteto para a retomada da construção. A câmera segue atrás do personagens por vários lances de escada, até que ele chega à sala dos desenhistas da empresa e, ato contínuo, a câmera se aproxima do protagonista já em perspectiva subjetiva, quando Tóth se vira para receber o visitante. Não me recordo de já ter visto uma transição de ponto de vista sem corte, no curso de uma cena, como um efeito dramático tão interessante – do suspense da caminhada de alguém indistinto para o reconhecimento, no rosto do protagonista, de uma nova chance de dar prosseguimento a seu tour de force criativo.

Já no clímax do filme, sem dúvida sua melhor cena, filmada em plano-sequência, a câmera segue o filho de Harrison escada acima à medida que ele procura o paí, transtornado depois de ser desmascarado em frente à família por uma enfurecida Erzsébet. Com um coordenação de movimentos (da câmera e dos atores) irretocável, a cena funciona muito bem em plano-sequência por condensar toda a revolta da personagem contra aquelas pessoas (e, por extensão, aquele país) que deveria acolhê-los, mas que, pelo contrário, tratou de violentá-los sistematicamente desde o primeiro dia. Entretanto, nem só de boas intenções e de brilhantismos pontuais da fotografia é feito um filme. Para uma história que tenta desesperadamente atrair para si a aura de épico contemporâneo, é curioso pensar como “O Brutalista”, de forma geral, soa como um retrocesso tanto em comparação ao filme de estreia de Brady Corbet quanto a outras epopeias cinematográficas.

Embora “A Infância de um Líder” sofra do mesmo problema ao ser conduzido com uma pretensão épica desmedida, a mise-en-scène do primeiro filme do cineasta é absolutamente formidável, transformando cada quadro na recriação de uma pintura realista feita no início do século XX através dos cenários, decoração, figurinos e principalmente da cuidadosa composição expressa nos fotograma. Em “O Brutalista”, contudo, o diretor demonstra ter perdido a habilidade de criar as imagens fortes e memoráveis que o roteiro pede. Ora, ao escolher gravar o filme em película 35mm pelo processo VistaVision, que gera imagens mais amplas, com altíssima resolução, maior profundidade de campo e mínima distorção – já que não se vale das lentes anamórficas para gravação ou projeção –, é esperado que esses diferenciais sejam usados narrativamente.

Por exemplo, a alta resolução da película pode aumentar o impacto das imagens por meio do detalhamento de elementos do cenário, das cores mais vivas e das nuances dos rostos e corpos filmados. É o caso de “Um Corpo que Cai” (1958), um dos tantos filmes que Hitchcock fez na década de 1950 com a tecnologia à época recém-desenvolvida. Já a imagem widescreen e a profundidade de campo podem ajudar a criar quadros apoteóticos, como aqueles que mostram o protagonista em meio ao deserto em “Lawrence da Arábia”. Esta seria a óbvia funcionalidade do VistaVision para um filme que tem como pano de fundo a arquitetura. Brady Corbet, porém, aparentemente quer subverter o grande escopo em favor de cenas mais intimistas, e isso seria absolutamente válido. Tanto que as construções de László Tóth aparecem muito pouco, e de forma superficial, ao longo do filme. Ocorre que, mesmo olhando por este prisma, o intimismo da decupagem 1) não combina com a proposta épica dos outros elementos do filme e 2) não se aproveita da estrutura técnica escolhida pelo diretor. Grande parte das cenas é filmada de forma protocolar, criando composições anódinas que teriam o mesmo efeito em película 35mm tradicional ou em filmagem digital. O VistaVision termina sendo não mais do que o uso da forma pela forma.

Todavia, não apenas ele parece gratuito em “O Brutalista”. A cena mais chocante do filme, que acontece durante uma viagem, é completamente abrupta, com um personagem escalando de uma hora para outra a um patamar absurdo de vilania. Ao fazer isso, o roteiro de Brady Corbet e Mona Fastvold se rebaixa, adicionando à história um tom exploratório e de mau gosto que é amplificado pela descuidada dramaturgia nessa reta final do filme. Trata-se, a bem da verdade, de um roteiro que desde o início dá pouco material para os atores, todos no limiar da indiferença e da caricatura. Adrien Brody interpreta novamente um sobrevivente do Holocausto, tal qual em “O Pianista” (2002). Mas seu László Tóth não tem sequer um décimo da profundidade daquele personagem, e o ator entrega uma performance travada e monocórdica, que esconde sua expressividade. Felicity Jones, por sua vez, tem um pouco mais de substância no texto, embora a atriz dê a Erzsébet uma fala truncada e exagerada que chama a todo tempo a atenção de forma negativa. Apenas Guy Pearce se destaca com uma caricatura proposital do magnata medíocre, com postura e voz expansivas que ressaltam tanto a arrogância quanto a pequenez do personagem.

“O Brutalista” se encerra com um salto no tempo, com o protagonista mais velho sendo finalmente celebrado, não na América, mas de volta à Europa. Porém, a confusão tonal e a exposição pobre deste final – havíamos visto algo parecido quando Corbet usa um noticiário de rádio para falar as consequências do vício em heroína que, já era claro, acometia o protagonista – apenas sedimentam a série de equívocos criativos que perpassam o longa. Nem a trilha sonora grandiosa, com destaque sugestivo para os metais, ou o forte significado do centro comunitário construído por Tóth na Filadélfia, desenhado como um campo de concentração – um ótimo elemento do roteiro, ainda que timidamente aproveitado –, são capazes de mitigar as falhas da obra como um todo.

Voltando à origem, ao título do filme e àquilo que deveria ser seu cerne, o estilo brutalista ressalta a aspereza e a rigidez do concreto, dizendo também sobre um tempo histórico duro e pesado, tanto em termos econômicos quanto sociais. Compreender o Brutalismo é, assim como acontece com quaisquer outras manifestações culturais, entender uma parte importante da história da humanidade. Infelizmente, porém, o filme de Brady Corbet, embora parta de uma premissa que ressoa fortemente nos tempos atuais, parece perdido, anacrônico e genérico em sua crônica temporal. O concreto, abundante nas obras do protagonista, é escasso na fundação do filme, um dos mais fracos da temporada de premiações de 2025. “O Brutalista” é, no fim das contas, um épico feito de papel. ■

Nota:
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