"Sing Sing" (2023), de Greg Kwedar - Divulgação
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“Sing Sing”: Uma encenação de liberdade

“Sing Sing” padece – talvez “padece” seja um verbo pejorativo e forte demais – carrega em seu DNA um atenuante similar ao do recente, e oscarizado, “Nomadland”. É um filme que, na sua mistura de realidade e ficção, documental e dramatúrgico, atores experientes e estreantes, pode parecer uma novidade disruptiva (e bem-vinda) em termos de Oscar e de premiações estadunidenses. Mas que, na verdade, é só mais um exemplar de um cinema contemporâneo que já vem sendo praticado há bastante tempo no resto do mundo – vide qualquer filme brasileiro exibido em festivais como Tiradentes e Brasília – e que talvez tenha demorado um pouco mais a entrar no radar mainstream da filmografia da América do Norte.

O que não quer dizer que o longa dirigido por Greg Kwedar e baseado numa experiência artística real na prisão do título seja ruim ou banal. Longe disso. Carregado por mais uma excelente performance do ator Colman Domingo – capitaneando um bom elenco formado majoritariamente por ex-integrantes do Rehabilitation Through the Arts (RTA), o programa retratado na trama –, o filme apresenta uma versão mais clássica e convencional do cinema mencionado no parágrafo anterior, mas que funciona bem nos seus propósitos, sem hollywoodizar em demasiado a história narrada a ponto de descaracterizá-la.

O roteiro de “Sing Sing” segue os integrantes do RTA, liderados pelo ator e dramaturgo John “Divine G” Whitfield (Domingo) e pelo diretor Brent (Paul Raci, de “O Som do Silêncio”), durante a montagem de seu novo espetáculo. A incipiente produção é marcada pela chegada de um novo detento ao grupo, Clarence “Divine Eye” Maclin (Clarence Maclin), que – assim como Divine G – vive a ansiedade e a expectativa da iminente audiência de revisão de sua pena.



"Sing Sing" (2023), de Greg Kwedar - Divulgação
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Kwedar estrutura seu filme em torno de uma série de dicotomias. A primeira, e mais óbvia delas, é a justaposição dos dois espaços centrais da produção: o teatro, onde o filme começa, no palco, e a prisão, de onde seus personagens não podem sair. A natureza de cada um desses ambientes atravessa todo o resto do longa: no choque entre a câmera na mão documental da fotografia de Pat Scola e a trilha clássica e melancólica do músico Bryce Dessner (do grupo The National); na ideia de que os personagens interpretam papéis no palco, mas que “detento” também é uma performance e que existe uma encenação inerente ao universo prisional; nas menções dos diálogos à disciplina similar de futebolistas e bailarinos, e na substituição de “nigga” por “beloved” no tratamento entre os integrantes; na hesitação entre drama e comédia durante a escolha de qual peça o grupo quer encenar; e no contraste da luminosidade forte que estoura ao entrar pela janela, filmada frequentemente num contraluz que deixa os personagens na sombra.

Essa justaposição de luz e sombra, especialmente, talvez seja o elemento central de “Sing Sing”. Porque é ela que sintetiza imageticamente a reflexão e o argumento temático proposto pelo longa – de que todas as dualidades do parágrafo anterior não são oposições. Não são mutuamente exclusivas. Pelo contrário, elas se contaminam, são indistintas e indissociáveis no mundo em que vivemos. Todos os personagens do filme – assim como todos nós – contêm luz e sombra dentro de si. A questão é como o mundo enxerga e trata de forma bastante diferente – dependendo da cor, classe, religião, sexualidade, etc. – as formas como essa luta se manifesta em cada um de nós.

Encarnando esse embate entre luz e sombra estão os dois personagens centrais, e divinos, de “Sing Sing”: Divine G e Divine Eye. A dupla começa em polos opostos dessa escala de iluminação, com o primeiro, na sua magnificência quase soberba de fundador do grupo e do programa, parecendo querer resgatar o segundo das pequenas contravenções e do ciclo de violência do qual ele não consegue escapar. Mas eles representam, na verdade, duas parábolas que se espelham e se cruzam, com a luz e sombra que cada um contém complementando a do outro.

"Sing Sing" (2023), de Greg Kwedar - Divulgação
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É nesse desenho dramatúrgico “redondinho”, talvez um pouco demais, que o filme de Kwedar pode parecer convencional – e quiçá, quase formulaico. Um salto temporal e um pequeno epílogo desnecessário no final pode reforçar essa sensação, mas ele é fiel e coerente à forma como o longa quer enxergar aquele programa e seus integrantes. Do início no palco ao fim redentor, “Sing Sing” opta por retratar seus personagens como pessoas que têm uma voz, que têm capacidade de criar, sonhar e fabular – e é isso que o teatro representa para eles. Um espaço de vazão para toda essa liberdade e fabulação que existe dentro dos detentos e que a prisão tenta sufocar. É o exercício de mentalização do lugar e do tempo perfeito, como proposto pelo diretor Brent. É talvez esquemático e um pouco óbvio demais? Sim, mas não deixa também de ser autêntico e muito bem feito. ■

Nota:

SING SING (2023, EUA). Direção: Greg Kwedar; Roteiro: Clint Bentley, Greg Kwedar; Produção: Clint Bentley, Greg Kwedar, Monique Walton; Fotografia: Pat Scola; Montagem: Parker Laramie; Música: Bryce Dessner; Com: Colman Domingo, Clarence Maclin, Sean San José, Paul Raci; Estúdio: Black Bear Pictures, Marfa Peach Company; Distribuição: A24, Diamond Films; Duração: 1h 45min.

Onde ver "Sing Sing" no streaming: