Nesta época em que vivemos, com abundantes franquias, continuações, prequels, requels e spin-offs, entre outros derivados, é reconfortante ir ao cinema e assistir a uma produção que realmente investe na originalidade. Que surpreende pela ousadia na abordagem. Que, no final das contas, se arrisca, mesmo sob pena de errar. “Maligno” (2021), “Babilônia”, de (2022) e “A Substância” (2024) são bons exemplos recentes de projetos que, embora muito referenciais, tentaram de forma ativa trazer um sopro de novidade ao cinema. Filmes que não têm medo de parecer exagerados e falhos e que tiram o espectador do ambiente seguro geralmente preconizado pelo cinema de entretenimento. “Pecadores” (2025), de Ryan Coogler, é exatamente este tipo de obra, com seus erros e acertos. Especialmente com “Babilônia”, os paralelos são vastos, desde a paleta de cores quentes até as cenas de festa megalomaníacas, passando pela participação da sempre ótima (e aqui mais bem aproveitada) Li Jun Li.
O filme de Ryan Coogler acompanha o retorno de dois irmãos gêmeos (Elijah “Fumaça” e Elias “Fuligem”, ambos interpretados por Michael B. Jordan) à cidade natal no Mississipi, no início da década de 1930. Depois anos viajando pelo mundo e ganhando dinheiro como gângsteres, eles voltam de Chicago e resolvem abrir um clube de dança (juke joint) especificamente direcionado ao público negro. No entanto, um enorme perigo começa a se espalhar pela cidade e ameaça a vida dos irmãos e das pessoas próximas a eles durante a noite de inauguração do clube. Por essa descrição, fica evidente que “Pecadores” é um filme de drama, tratando de questões pesadas como a segregação racial e o racismo no Sul dos Estados Unidos da primeira metade do século XX. Mas Ryan Coogler, que além da direção assina o roteiro, faz do longa-metragem também um filme de blaxploitation e, mais ainda, um filme de vampiros, e, portanto, de horror.
Essa combinação nem sempre funciona, e em certos momentos o longa parece confuso acerca de qual caminho tomar e de como lidar com suas muitas pretensões. Mas é na virada para o cinema de gênero que “Pecadores” se torna uma obra interessante. Enquanto tenta construir um drama sério, o roteirista e diretor esbarra em alguns problemas, entre eles a ausência de um ator mais desenvolto nos papeis protagonistas – Michael B. Jordan é muito inexpressivo e não consegue construir duas personalidades suficientemente diferentes e marcantes. Incomoda também no começo do filme a solenidade forçada que o cineasta tenta dar a algumas cenas, com planos, enquadramentos e diálogos que apontam para um caráter épico incompatível com o que de fato estamos vendo – afinal, o foco do filme não é exatamente o contexto macrossocial e histórico daquele tempo e lugar.
Há, no entanto, aspectos interessantes nesses primeiros momentos da obra, como as histórias pregressas dos dois irmãos. Elijah teve um relacionamento com Annie (Wunmi Mosaku), mas a filha dos dois faleceu ainda criança, um trauma que acompanha o personagem até o fim do filme. Interessante como o roteiro aborda a religiosidade afro-americana, algo ainda raro no cinema mainstream estadunidense, de forma natural através da personagem feminina, que acaba se tornando uma mentora espiritual quando os elementos sobrenaturais entram de fato na trama. No caso de Elias, por sua vez, sua complicada relação com Mary (Hailee Steinfeld), uma mulher branca descendente de afro-americanos, traz os comentários mais diretos sobre a dinâmica étnico-racial da época: a personagem, ainda vivendo o luto pela mãe, está em um limbo, ao mesmo tempo desfrutando do privilégio de ser lida como branca mas também em busca de sua real identidade junto ao grupo de pessoas negras que se reúnem no clube.
Este prelúdio dramático passa rápido, e, à medida que os elementos de blaxploitation vão aparecendo, o filme ganha um pouco mais de personalidade. A comparação com longas como “Blacula, o Vampiro Negro” (1972) é inevitável, principalmente ao descobrirmos a real natureza da ameaça sobrenatural. Há muito do blaxploitation também na própria construção dos protagonistas, como anti-heróis com uma moral dúbia e questionável. Mas, ainda assim, Coogler parece preso demais a clichês ultrapassados do gênero, construindo homens misóginos e mulheres lascivas que soam anacrônicos às outras discussões tão contemporâneas que o filme levanta.
Quando se liberta dos estereótipos do blaxploitation, então, o cineasta consegue conceber momentos muito mais multifacetados e criativos. Por exemplo, no clímax da inauguração, Coogler usa uma longa cena de performance musical para argumentar imageticamente como o blues, o hip-hop, o soul, o funk e outros gêneros musicais de matriz afro-americana são, tal como os griots, capazes de contar histórias e conjurar manifestações da ancestralidade negra, mas também atraem o ódio racista. Embora a montagem seja muito literal e dure tempo demais, trata-se de uma abordagem forte, visualmente impactante e puramente cinematográfica – com a câmera passeando em meio a uma multidão em movimento enérgico – que exalta a cultura musical negra, suas raízes e seu papel enquanto resistência também política, em diálogo com demandas antirracistas atuais.

filme Pecadores
Aliás, pode-se dizer que a música é a espinha dorsal de “Pecadores”. E ela se manifesta sobretudo no personagem Sammie Moore (vivido na juventude por Miles Caton, uma revelação como ator e cantor, e na velhice pelo grande vocalista e guitarrista “Buddy” Guy), filho de um pastor protestante e primo dos gêmeos protagonistas, que rejeita a Igreja em busca do sonho de ser músico. Como um desdobramento do racismo estrutural americano, a preferência do garoto pela música popular é vista como pecaminosa, uma negação da tradição cristã européia imposta aos afro-americanos, e ele tem de decidir, no final, após uma intensa purgação, se quebrará o instrumento musical que simbolicamente representa seu contato com a ancestralidade.
O que eu chamo aqui de purgação compreende o terço final do filme, quando Ryan Coogler finalmente coloca o horror em destaque, construindo as melhores cenas e, principalmente, aquelas que ficarão na memória do público. Claramente inspirado em “O Príncipe das Sombras” (1987), de John Carpenter, o ataque dos vilões ao clube é muito bem concebido e encenado, agregando tensão ao filme, ao mesmo tempo servindo também como uma intensa metáfora para as relações étnico-raciais nos Estados Unidos. E aqui sim o roteiro de Coogler é muito feliz ao não partir para a alegoria mais óbvia. Remmick (Jack O’Connell), o primeiro vampiro que vemos, morde um casal branco integrante da Ku Klux Klan. Os três então partem para o clube, atraídos pela música, e tentam entrar, com o objetivo de transformar os presentes. Ao invés, então, de associar o vampirismo diretamente ao racismo, o roteiro demonstra como pessoas brancas e racistas podem, quando atraídas por manifestações culturais negras, tentar corromper suas identidades, também como um modo de destruição. Na direção oposta, os vampiros podem ser vistos aqui como aliados da população negra, dando às pessoas a imortalidade e impedindo a chacina que estava sendo planejada pelos membros da Ku Klux Klan. Como todo conceito brilhante, esta ideia de Ryan Coogler comporta variadas possibilidades de leitura.
Além da criatividade como roteirista, o cineasta também demonstra uma grande habilidade na direção. Ao lado de sua diretora de fotografia, Autumn Durald Arkapaw – todos os seus filmes também têm mulheres nessa posição –, o realizador utiliza muito bem a película 65mm na qual o longa-metragem foi gravado, tanto na composição de quadros amplos envolvendo paisagens quanto na exploração plena, com a alta resolução, dos detalhados cenários e ambientes, e ainda, com a profundidade de campo que permite vermos vários personagens e elementos em foco ao mesmo tempo. Outro destaque do filme são os planos longos contendo movimentos de câmera fluidos e bem coreografados, que ajudam o espectador, principalmente no início, a entrar naquele universo de época marcado pelas tensões raciais e pelas relações entre os personagens que logo terão que se unir para tentar sobreviver.

filme Pecadores
“Pecadores” tem, em seu terceiro ato, duas cenas especialmente marcantes. Em uma delas, os vampiros recém-transformados dançam freneticamente sob a luz da noite. Em outra, Remmick é, tal qual Nosferatu, violentamente queimado pela sol nascente, com maquiagem e efeitos digitais muito bem utilizados – os vampiros deste filme, aliás, têm uma aparência brutal e desfigurada que adiciona grande força à premissa de horror da história. São imagens memoráveis de um filme que, mesmo tendo seus problemas, se destaca em meio à infinidade de projetos acomodados que têm se tornado cada vez mais comuns. Com o roteiro ousado e a direção segura de Ryan Coogler, o longa-metragem consegue surpreender indo por caminhos inesperados, sem receio de oferecer algo diferente ao público. O filme crava seus dentes no espectador e, ao longo de suas mais de duas horas, morde cada vez mais fundo. Tal qual seus vilões, Ryan Coogler busca e encontra sangue novo. De tempos em tempos, é disso que o cinema de gênero precisa. ■
filme Pecadores
filme Pecadores
filme Pecadores